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Body Heat

Um amigo disse-me, há um par de dias, que o ambiente quente e carregado das últimas semanas lhe fazia lembrar o filme neo-noir de Kasdan (1981) que dá o título a esta peça.

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Além da meteorologia, tivemos todos os ingredientes da película - paixão, traição, astúcia, ambição, vingança, ilusão e até noites escaldantes (infelizmente não protagonizadas por Kathleen Turner). Vimos candidaturas presidenciais, alianças políticas, programas eleitorais, sim, mas vimos sobretudo o que mais cativa os portugueses - uma excitante novela futebolística, recheada de episódios picantes e personagens populares.

 

Bastou a transferência de um treinador para que a política sumisse das atenções gerais. Das iniciativas político-partidárias das últimas semanas já só os comentadores têm registo. Esta deslocação de interesses do público para temas simples, vibrantes e facilmente entendíveis é, aliás, um fenómeno corrente e observável por toda a Europa. A política perdeu grande parte do encanto e da excitação que provocava noutros tempos, onde as alternativas eram facilmente assimiláveis e os dirigentes beneficiavam de um capital de credibilidade que o novo mundo digital e as fraquezas da carne se encarregaram de desfazer.

 

A crise económica, ao contrário de aproximar os cidadãos da política, afastou-os. Em parte por lassidão, em parte por incompreensão. A curiosidade geral que os temas económicos suscitaram, com a chegada da tríade e os episódios dramáticos que a antecederam e se lhe seguiram, quer no mundo público quer no privado, foi sendo lentamente substituída pela desistência. Hoje, os portugueses estão cansados de défices estruturais, de ratios da dívida pública, de balanças de pagamentos, de défices externos e de contas da Segurança Social. No momento em que a política é capturada pela economia, os cidadãos fartaram-se dos economistas.

 

São já poucos os que dedicam tempo e conseguem penetrar na malha intrincada dos cenários de referência, das previsões de longo prazo e dos multiplicadores económicos. Aturdidos e perplexos, os eleitores encolhem os ombros perante a nova geometria variável da política embrulhada em balanced scorecards para Berlim ver. Os mais pensantes interpelam as suas convicções à luz do predomínio das tecnicidades sobre as opções programáticas. Baixar a TSU é de direita ou de esquerda? E o IRC ou o IRS? Manter o investimento público a níveis indigentes é uma medida de prudência ou de miopia? Abrir a economia portuguesa ao capital internacional, sem restrições de proveniência, revela uma atitude de modernidade e progresso ou de capitulação? Matar a zona franca da Madeira, em nome de princípios que nenhum dos nossos parceiros europeus cumpre, revela uma atitude política de que cor? Abrir os serviços públicos a concessões privadas demonstra sentido de interesse público ou é uma simples obsessão neoliberal?

 

No hemisfério norte, o pensamento económico neoclássico absorveu a política, transformando-a numa câmara de ressonância de modelos econométricos, pigmentados de técnicas comunicacionais de alcance duvidoso. Na Europa, a economia política está moribunda. Em seu lugar, instalou-se uma acomodação geral ao primado da finança e das conveniências dos mais fortes. Se hoje vivemos um momento de alguma acalmia nos mercados de capitais e nos ataques desenfreados às dívidas soberanas dos membros mais expostos, não é porque tenha havido um regresso consequente do pensamento keynesiano ou um assomo de solidariedade europeia. É porque os mercados são politicamente agnósticos e reagem instantaneamente aos estímulos do contexto (neste caso, do Banco Central Europeu), na estrita medida dos seus interesses creditícios. Onde está a política?

 

Está sim, e bem viva, nas opções que se colocam ao governo grego e à Zona Euro nas próximas semanas. Ao contrário do que a intelligentsia teutónica propagandeia e o neo-socialista Dijsselbloem subscreve, o Grexit seria trágico para a Europa.

 

"Quando a Gestapo veio buscar um meu vizinho comunista, achei que não era nada comigo. Quando depois prendeu famílias de judeus e de testemunhas de Jeová do meu bairro, mantive-me calado. No dia em que me vieram buscar um filho por suspeitas de homossexualidade, bradei aos céus e pedi solidariedade. Todos assobiaram para o lado - não era nada com eles."

Anónimo alemão – 1944

 

Economista; Professor do ISEG/ULisboa 

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