Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião

Os comboios de Budapeste

A vida tem sido tranquila. Faço parte da geração que "entrou na Europa" e isso foi tirando nitidez à fotografia das senhoras que pediam no Chiado e à suspeita que nem todos os miúdos andavam com a barriga cheia como a minha. 

Faço, afinal, parte dos milhões que experimentaram essa coisa a que os sociólogos chamam mobilidade social ascendente que, na prática, significa que com a ajuda e sacrifício dos pais foi possível, aos que escolheram estudar e trabalhar, viver em paz, com mais ou menos sacrifícios, mas sempre com a tranquilidade da mesa posta.

 

Este Verão, um amigo recordou-me o óbvio: poucos portugueses no passado levaram tantas décadas seguidas de próspera tranquilidade.

 

A tranquilidade tem sido tanta que chegámos a este Verão tomando o que se passa na Grécia como uma "tragédia humana" ou perorando sobre essa "obrigação natural", que a História teimosamente ignora, de os Estados pagarem as dívidas uns aos outros. Enfim, o entusiasmo pueril e abelhudo destes dias em que todos somos jornalistas e filósofos na internet …

 

Não é mau que o conforto nos tenha descansado. Mas a vida não foi assim antes e não é assim em muitos sítios que preferimos ignorar por não estarem no palmo em frente do nosso nariz.

 

Há, contudo, que reconhecer que quando a desgraça está distante, no tempo ou no espaço, a leitura pode preencher a imaginação e suscitar o conhecimento, mas a imagem tem de facto outra força.

 

Li muitas páginas de história e romance sobre a Segunda Guerra e nada me comoveu como a novela gráfica " Maus" de Art Spiegelman e a sua alegoria, a preto e branco, do holocausto como uma enorme ratoeira. Eu, que deixo as letras desenhar-me tanto na cabeça, foi com imagens que melhor apreendi a banalidade do mal e o horror daqueles anos.

 

Os últimos dias tornaram, novamente, o sossego impossível. Esta crise dos migrantes como agora dizemos, por ser difícil distinguir refugiados e imigrantes da miséria, fazem, como as imagens de Srebrenica há quase vinte anos, a cabeça funcionar a preto e branco e instalam uma angústia que as palavras não acompanham.

 

Felizmente, os gatos da alegoria do "Maus" aprenderam com a história. Contra quase todos, ao lado dos refugiados têm estado Angela Merkel e a Alemanha.

 

Além de verbalizar o óbvio: o fenómeno a que estamos assistir é o verdadeiro desafio para a Europa, muito mais do que a Grécia ou a crise do euro, a chanceler passou desta vez a acção.

 

Suspendeu a aplicação do regulamento de Dublin aos sírios, enfrentou com a força que se impunham a extrema-direita, vai receber na Alemanha 800 000 pessoas que são uma bênção para sociedades envelhecidas como as nossas e decidiu confrontar os líderes europeus propondo uma cimeira extraordinária para tratar desta calamidade.

 

Enquanto isso, alguns dos retratados por Spiegelman continuam iguais ou, pior, esqueceram que são herdeiros de tradições seculares de tolerância e liberdade.

 

Na Polónia e na Eslováquia parece que estão disponíveis para receber meia dúzia de católicos, da Hungria melhor não falar e o Sr. Cameron, incapaz como Merkel de suscitar a adesão do seu povo a estas obrigações humanitárias, chama "praga" aos homens, mulheres e crianças que arriscam a vida e o pouco que tem em viagens de puro horror. Horror também porque as embaixadas da União Europeia não estão abertas a conceder vistos, deixando a distinção entre imigrantes e refugiados às companhias aéreas... que a todos dizem "não".

 

Ontem, a sair de Budapeste e de Viena, em comboios alemães, os refugiados gritavam Alemanha! Eu lembrei-me dos comboios desenhados por Spiegelman e confortei-me, muito, na ideia de que estes correm na direcção exactamente oposta dessa História.

 

Advogado

Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio