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20 de Abril de 2020 às 22:10

Capital com vírus

Mais estranho é termos cientistas sociais, alguns media e políticos disfarçados de economistas, que revelam desconhecer o funcionamento empresarial e da economia de mercado,

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A FRASE...

 

"Se a EDP insistir na distribuição de dividendos, não poderá ser o Estado a julgar a sua decisão. Os cidadãos, sejam ou não seus clientes, cá estarão para o fazer."

 

Manuel Carvalho, Público, 18 de Abril de 2020

 

A ANÁLISE...

 

A distribuição de dividendos nesta crise pelas empresas é boa ou má? E para quem? A forma como se lança o debate, numa lógica anticapitalista e popular, explica, em parte, o reduzido capital e excesso de dívida privada nas empresas. O capital é escasso, porque nunca foi bem tratado. Ou porque o empresário não quer partilhar governação com outros acionistas, preferindo assim a dívida bancária, ou porque os governos revelam tiques intervencionistas sobre a atividade empresarial, ou pela memória de nacionalizações ou por instabilidade e elevada carga fiscal, culminando agora, à boleia de um vírus, com a eventual benigna ideia de a distribuição de dividendos poder ser limitada por imperativos de bem público, e não por razões substanciais económicas. A cultura política e mediática predominante é atacar os empresários quando ganham dinheiro e os bancos porque cobram juros às empresas, que parecem ser sempre excessivos. Na prática, o português da cultura de Abril não gosta de património, seja sobre a forma de capital ou dívida: não é para se pagar ou remunerar, é para se "gerir". Mais estranho é termos cientistas sociais, alguns media e políticos disfarçados de economistas, que revelam desconhecer o funcionamento empresarial e da economia de mercado, ou porque lhes dá jeito tal ignorância para defender legitimamente o seu modelo de sociedade, designadamente a atribuição de funções sociais às empresas.

 

No caso das grandes empresas cotadas em bolsa, insinuar que estas não devem pagar dividendos, para levar o debate para a lógica moral, "já que todos vamos sofrer com o vírus e há uns que vão se opulentar de dinheiro", não pode servir de justificação. Como refere Hannah Arendt, no seu livro "Verdade e Política", ao esbater as linhas de demarcação entre o facto, e a interpretação, para escrever ou fazer história, não se pode atentar contra a própria matéria factual. Uma leitura exaustiva de um relatório e contas e a memória histórica ajudariam: a bancarrota de Sócrates de 2011 teve como consequência a venda de ativos empresariais às poupanças estrangeiras, e já não são só os portugueses que são os seus proprietários. Dá-se a infelicidade de, com o vírus, serem esses mercados de poupanças externas (de capital e dívida) a que nos temos de dirigir para reerguer o país. Os pensionistas da Segurança Social e os pequenos aforradores portugueses também dependem dos parcos dividendos para pagar as suas contas de luz, água, alimentação e saúde. Os que contraíram dívida para comprar bens duradouros, e colocaram algumas poupanças de parte investidas em ações de empresas cotadas, podem precisar do dinheiro para liquidar as suas dívidas. E quando as empresas precisarem de capital ou dívida para investirem na sua atividade pedem-no àqueles a quem recusaram pagar o seu dividendo ou juro?

 

Os populismos de esquerda leem a realidade como uma permanente eliminação das desigualdades e promoção de justiça redistributiva. Os de direita, um reforço dos poderes do Estado perante uma sociedade malévola. Os de esquerda são aceitáveis, na ditadura do politicamente correto, porque se aproximam da social-democracia; os de direita nem tanto porque têm odor de fascista. Um governo apoiado pelo Partido Comunista Português, que teve de ser derrubado em novembro de 1975 para se cumprir os valores de Abril, e por um Bloco de Esquerda insanamente subversivo do modelo da sociedade europeia não pode ser nunca social-democrata. A política tem um preço. Os socialistas moderados e os sociais-democratas de esquerda, desgraçadamente para este país, escolheram os "compagnon de route" errados e pelas razões erradas. O vírus vai revelar a doença socialista de esquerda radical. O insuspeito economista de esquerda Jeffrey Sachs, um apoiante lúcido de Bernie Sanders, lá teve de lhe explicar que o socialismo democrático que defendia para a sua América não era idêntico à social-democracia escandinava. Julgo que Bernie, ainda que não renegando o seu apoio, nunca o percebeu.

 

Este artigo de opinião integra A Mão Visível - Observações sobre as consequências diretas e indiretas das políticas para todos os setores da sociedade e dos efeitos a médio e longo prazo por oposição às realizadas sobre os efeitos imediatos e dirigidas apenas para certos grupos da sociedade.

maovisivel@gmail.com

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