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Os Ronaldos que ninguém conhece

No Portugal antigo, que é como quem diz até 2014, ser português não era moda. Abe tinha todas as razões para ignorar as suas origens e fingir-se ibérico, como fizeram tantos outros, ou dedicar-se a outras cozinhas.

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Cidade de Chicago, Illinois, 6.418 km de Lisboa. Entro no carro em direcção a um restaurante que me dizem ser um dos melhores da cidade. "Chama-se Fat Rice", diz a jornalista que o recomenda. "É asiático, mas tem inspiração europeia, toda a gente adora." O carro anda quase meia hora em direcção a um dos subúrbios da segunda cidade americana. Assim que entro no restaurante tenho o primeiro choque: um galo de Barcelos. Esse mesmo, aquele, o nosso. Enorme, altivo e colorido.

 

Devo ter entrado na morada errada, pensei. E voltei a sair. E voltei a entrar. Afinal era ali mesmo. Sem saber como, tinha aterrado num restaurante português que era também um dos melhores da cidade e que, cereja em cima do bolo, é apresentado pelos empregados como tendo "comida portuguesa internacional". A surpresa foi tanta que me senti envergonhado. Fui ao Google. Menos mal: tal como eu, praticamente nenhum português tinha ainda ligado este Fat Rice ao país do lado de lá do Atlântico.

 

Abe Conlon é o nome que explica esta história. Até o nome provoca engano: nome e apelido vêm do lado do pai, família irlandesa, e talvez por isso tenha passado tanto tempo fora do nosso radar. No entanto, quem moldou Abe da cabeça aos pés foi a mãe e a avó; elas, sim, portuguesas de sangue e de ginjeira. Foi com a avó que aprendeu a comer e a cozinhar bacalhau. E foi na comunidade de Lowell, onde a família aterrou quando emigrou dos Açores, que passou a infância a comer bifanas, espetadas, cozidos e tudo aquilo que nenhum emigrante abdica.

 

Como tantos outros, talvez fosse mais evidente que Abe aspirasse a ser comerciante, empresário, médico ou, deus nos acuda, um sensaborão advogado. Em vez disso, quis ser cozinheiro. Aliás, chef profissional. Encartou-se com o melhor título do país, o da Culinary Institute of America, e como todos os rapazes ambiciosos atirou-se ao mundo de cabeça. Rodou restaurantes, pequenos, grandes e médios, uns melhores e outros piores, e acabou a fazer o que é inevitável para qualquer americano: lançou o negócio dele. E depois outro e depois outro...

 

Pelo meio aconteceram duas coisas importantes. Conheceu Adrienne Lo, de origem chinesa, parceira de negócio até ao dia de hoje. E leu um artigo sobre Macau, os encantos da ex-colónia e a sua exótica comida autóctone em vias de extinção, que lhe lembrava a avó. Com a comida portuguesa tão ligada aos restaurantes-caravela para emigrante ver, Abe viu ali uma oportunidade. E agarrou-a.

 

Em 2012 abriu este Fat Rice, que um ano depois foi considerado o quarto melhor novo restaurante nacional pela Bon Appetit. Depois vieram os programas de televisão, os livros de cozinha e os prémios. Muitos e bons, até chegar ao mais importante de todos, o James Beard, também conhecido por Michelin americano. No ano passado, Conlon entrou no Olimpo ao ser considerado o melhor chef de toda a região. E foi convidado a assumir uma residência temporária no cobiçado Chefs Club de Nova Iorque, por onde passaram muitas estrelas nacionais. Garante-me um grande chef de Nova Iorque que foi ele quem mais procura de clientes despertou.

 

Não é exagerado dizer que, nos dias de hoje, Abe é conhecido em toda a América. Tanto pelo prato que dá nome ao restaurante, o famoso Arroz Gordo macaense, como pelas favas, pelas sardinhas, pelo bacalhau e pelas conservas servidas com papo seco. Tudo bem nacional. No Portugal antigo, que é como quem diz até 2014, ser português não era moda. Abe tinha todas as razões para ignorar as suas origens e fingir-se ibérico, como fizeram tantos outros, ou dedicar-se a outras cozinhas. Mas decidiu inspirar-se na mãe e na avó e, ao fazê-lo com sabedoria, ajudou-nos a todos.

 

O país que temos hoje deve muito a estes Ronaldos que andam pelo mundo a falar do como é - ou pode ser - especial este nosso pedaço de terra. Claramente, devemos esta mudança de perspectiva e de atitude mais a pessoas como Abe do que às más campanhas de marketing em que despejamos milhões em actores secundários que bajulamos. Abe merecia ser conhecido (hoje diz-se famoso) em Portugal. É para pessoas como ele, aliás, que a fama mais faz sentido do ponto de vista coletivo, porque é através deles que podemos incentivar o mérito e a qualidade em vez de promovermos a cópia e a mediocridade.

 

Declaração de interesses: depois de conhecer Abe Conlon convidei-o a entrar no projecto da Time Out Market Chicago, que abrirá no final do ano e cuja concepção pude dirigir com outros portugueses. Ele aceitou e ficará justamente com o lugar central da praça. Digo-o há muitos anos, este conceito - o de unir a nossa gastronomia às influências africanas, brasileiras, indianas e asiáticas com centenas de anos de história - é talvez o filão mais valioso e menos explorado da nossa cultura, isto é, da nossa economia. 

 

Presidente e diretor criativo do Time Out Market

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