Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
25 de Novembro de 2014 às 21:15

O bandido de fraque

Pela segunda vez na história da democracia portuguesa uma investigação judicial atinge o topo da hierarquia política, mas, desta feita, as inquirições da Procuradoria-Geral sobre suspeitas de participação de José Sócrates em actos de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais decorrem num quadro legal e político mais propício à eventual prova dos alegados crimes.

  • 11
  • ...

 

Uma rede de tráfico de influências de pessoas ligadas ao Presidente da República ficou a claro na sequência das notícias surgidas em torno das investigações do procurador António Rodrigues Maximiano após a denúncia ao semanário "O Independente", em Fevereiro de 1990, de um acto de corrupção envolvendo o governador de Macau, Carlos Melancia.

 

Insuficiência de provas e questões jurisdicionais foram então evocadas pelo procurador-geral Cunha Rodrigues para não ouvir Mário Soares, sendo, no rescaldo, Melancia absolvido do crime de corrupção passiva em 1993 (sentença confirmada em 2012 pelo Supremo Tribunal de Justiça), apesar de, em processo distinto, três sócios seus na empresa "Emaudio" acabarem condenados por corrupção activa do governador.

 

Arte de Furtar

 

"De três maneiras pode um rei ser ladrão. Primeira, furtando a si mesmo. Segunda, a seus vassalos. Terceira, a estranhos", assevera um clássico português e pouco mais será de acrescentar ao mestre do barroco seiscentista, autor da "Arte de Furtar". 

 

Passados 24 anos sobre o abalo do "fax de Macau" o enquadramento legal sobre  financiamento de partidos e movimentações de capitais alterou-se, as percepções públicas da corrupção são muito mais negativas, a acutilância dos investigadores acentuou-se e a tolerância ante abusos de agentes do poder administrativo, legislativo, judicial ou executivo em proveito próprio e de associados revela-se bem menor.

 

Inquirido por suspeitas de fraude, Costa Freire demitiu-se de secretário de Estado da Saúde, foi o primeiro político alvo de prisão preventiva em 1990, e condenado em 1994 a seis anos de prisão, recorreria da sentença para ver o processo prescrever em 2004.

 

Depois do secretário de Estado de Leonor Beleza, outros ministros, deputados e autarcas iriam ver-se a contas com a justiça, começando a constatar-se publicamente que à corrupção ancorada nas estruturas do Estado se encontram associadas outras formas de abusos (proveitos obtidos por informação privilegiada, por exemplo) em que se locupletavam bancos, empresas, sindicatos, particulares.

 

BPN e BES são casos em que a criminalidade económica e financeira conta com conivências legislativas e executivas, exacerbadas por lacunas dos mecanismos de regulação nacionais e internacionais, e em que se acumulam conflitos de interesses agravados pelo carrossel de incessantes saltos entre instituições públicas e privadas de restrito pessoal político-tecnocrático.

 

Poder e proveito

 

A corrupção, em sentido lato, é acto de poder em proveito próprio e, consequentemente, dá-se ao pecado, porque é acto doloso, quando alguém se faz valer da sua posição na hierarquia decisória ou funcional de estruturas estatais ou instituições e associações diversas para violar normas legais.

 

Isto vale para a manipulação da taxa Libor ou a construção de um matadouro em Braga.

Das formas impunes e boçais, recorrentes na Madeira ou nos meios futebolísticos, ao pretenso requinte dos responsáveis pelos contratos de parcerias público-privadas, a perversão em interesse próprio tem como consequência deslegitimar o regime democrático.

 

Um Estado de direito democrático assenta na soberania popular, sujeita-se a princípios, regras e procedimentos  jurídicos que asseguram direitos e liberdades pessoais e colectivas, segundo determinados padrões de valores essenciais, e, acaba,  correndo sérios riscos quando claudica ante abusos de poder.   

    

O acto de corrupção de detentores de poderes de Estado - tal como noutros contextos a apropriação ilícita de bens, fraudes, etc. - viola noções elementares de confiança social, bem comum e equidade, tendo a impunidade de mentores e agentes  criminosos efeitos danosos.

 

Talleyrand e morte de Sócrates

 

Uma das taras da justiça portuguesa tem a ver com uma enraizada inépcia comunicacional que assenta, em última análise, na ideia de que a irresponsabilidade dos juízes os isenta da atempada eludicação de determinadas decisões de impacto público.

 

A violação sistemática do segredo de justiça é outro desvario abusivo que desqualifica, igualmente, toda a ordem judiciária e judicial e no caso da detenção de Sócrates foi, mais uma vez, evidente que tal expediente é contraproducente.

 

É inverosímil a coincidência temporal na Portela, no Campus de Justiça e nas páginas de "O Sol" e "Correio da Manhã" de imagens e informações porque independentemente de paralelas e legítimas investigações jornalísticas, só uma fuga de informação da Procuradoria explica que certos órgãos de informação tivessem prévio conhecimento da detenção de Sócrates.

 

Neste caso, como em tantos outros, vale o que asseverou o imoralista Talleyrand nos primórdios do século XIX: a violação do segredo de justiça é pior do que um crime, é um erro.     

                                    

Sócrates deu entrada cadáver político no Estabelecimento Prisional de Évora e aguardemos para saber se a partir dos indícios se chegará a prova em julgamento.

 

Jornalista

Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio