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04 de Março de 2014 às 19:00

O anschulss de Putin

Qualquer governo em Kiev que ponha em causa a superioridade naval russa no Mar Negro ante forças militares da Turquia, Bulgária, Roménia, Ucrânia e Turquia será considerado em Moscovo como entidade a abater.

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Assegurar o controlo da Crimeia e a capacidade de projecção das forças navais russas no Mediterrâneo através do Mar Negro, independentemente do evoluir da crise ucraniana, é um dos principais objectivos estratégicos do Kremlin.

Putin está ainda mais seguro do que se encontrava Hitler em 1938, mas terá de limitar as suas ambições à península do Mar Negro e, ao invés do que o Führer conseguiu na Áustria, cabe-lhe abdicar da veleidade de absorver a totalidade da antiga república soviética.

Os pormenores da anexação de facto da Crimeia e da cidade de Sevastopol – sujeita a um estatuto administrativo especial, tal como Kiev, de acordo com as constituições ucranianas de 1996, 2004 e 2010 – dependerão do que vier a ocorrer nos próximos tempos.

A lógica separatista

A concretizar-se o referendo que as forças pró-russas convocaram para 25 de Maio (na data das eleições presidenciais ucranianas) o Kremlin testará um modelo jurídico de soberania conforme aos seus interesses salvaguardando nominalmente a autonomia das minorias tártara e ucraniana.

O estatuto da península dependerá, contudo, dos jogos de interesses nas regiões russófonas do Leste e Sul da Ucrânia.

A contestação pró-russa a Kiev aponta para uma lógica dita de federalização que visa esvaziar o governo central de poderes nessas regiões.

O risco de secessão será tanto maior quanto mais forte for o apoio de Moscovo a tais exigências que serão, de resto, dificilmente aceites por autoridades em Kiev que dependam do eleitorado das regiões do Centro e Ocidente do país.

A partilha da Ucrânia é, consequentemente, um cenário admissível a prazo tanto mais que a ameaça de bancarrota obrigará próximos governos em Kiev a adoptarem políticas económicas com efeitos sociais muito gravosos.

Na óptica do Kremlin, o acordo de Abril de 2010 garantindo até 2042 a presença russa nas bases navais de Sevastopol e Fedosia e os aeroportos militares de Katcha e Gvardeskaia apenas poderá ser ampliado para aumentar os efectivos militares e as unidades de marinha e aviação.

Qualquer governo em Kiev que ponha em causa a superioridade naval russa no Mar Negro ante forças militares da Turquia, Bulgária, Roménia, Ucrânia e Turquia será considerado em Moscovo como entidade a abater.

Esferas de influência

A par da capacidade de projecção de força militar o Kremlin terá de levar em conta os interesses dos grupos económicos e financeiros ucranianos mais dependentes dos mercados e investimentos russos e ponderar o papel do estado ucraniano como comprador e território de trânsito de gás natural.

O gasoduto "North Stream" no Mar Bálico tem vindo desde 2011 a diminuir a importância relativa da Ucrânia como território de trânsito, situação que se acentuará com a abertura no final de 2015 do "South Stream" via Mar Negro, mas a Rússia não poderá prescindir em absoluto das infra-estruturas de acesso aos mercados europeus.

Na impossibilidade de levar a Ucrânia a integrar a "União Euroasiática", juntando-se ao Cazaquistão e Belarus, Moscovo ver-se-á obrigada a considerar os seus financiamentos a Kiev, designadamente os preços de venda de gás (268,5 dólares por tonelada cúbica desde Dezembro) que são revistos trimestralmente.

Na Moldova, a Rússia sustenta o enclave de Transdniester e conseguiu que a minoria gagauze (155 mil cristãos-ortodoxos turcófonos) votasse em Fevereiro a favor da adesão a uma união aduaneira com a Rússia.

A guerra de 2008 com a Geórgia confirmara, por seu turno, a entrada formal na esfera de influência russa da Ossétia do Sul - separada de facto desde 1992 de Tbilissi - e da Abkázia, que com os seus 250 mil habitantes seguira o mesmo caminho em 1993.

O direito de intervenção em defesa dos direitos dos 25 milhões de russos residentes em estados resultantes da dissolução da URSS em 1991 é reivindicado por Moscovo na Europa e na Ásia Central (no extremo-oriente tal retórica ainda poderá voltar-se contra o Kremlin dada a crescente presença chinesa em território russo) na tradição dos expansionismos e revanchismos que devastaram o Velho Continente.

Uma economia dependente das exportações de hidrocarbonetos não está, porém, em condições de controlar militarmente e subsidiar países com a dimensão da Ucrânia.

A consequência nuclear

A investida de Putin na Ucrânia, ante a impotência ocidental, tem igualmente como pérfida consequência complicar extraordinariamente qualquer negociação para evitar a proliferação militar nuclear.

Kiev desmantelou entre 1994 e 1996 o arsenal nuclear herdado da URRS e em contrapartida, nos termos do tratado de Budapeste de Dezembro de 1994, a Rússia, Estados Unidos e Grã-Bretanha comprometeram-se a respeitar a independência, soberania e integridade territorial da Ucrânia.

A renúncia a armas de destruição maciça com capacidade de dissuação significativa contra ameaças militares implica garantias internacionais que podem ou não ser cumpridas e está longe de oferecer segurança a regimes ditatoriais conforme mostra o exemplo de Muammar Gaddafi depois de ter abandonado o seu programa nuclear clandestino em 2003.

Putin, cujo regime autocrático não pode tolerar focos de contestação exteriores susceptíveis de alimentarem oposições internas, acaba de dar mais uma machadada nos pactos internacionais de contenção da proliferação de armas nucleares e de destruição maciça.

Jornalista

barradas.joaocarlos@gmail.com

http://maneatsemper.blogspot.pt/

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