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01 de Maio de 2018 às 18:30

Gente descartável

"O chicote estará na mão do preto" dentro de 15 ou 20 anos se continuarem a entrar no Reino Unido emigrantes da Commonwealth, advertia Enoch Powell, em Abril de 1968, seus compatriotas brancos num discurso virulento e marcante.

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A visão da violência a abater-se sobre a Grã-Bretanha por força de a maioria dos emigrantes das antigas colónias pretenderem dominar todos os demais levou, então, o antigo ministro da Saúde conservador a evocar uma clássica profecia da "Eneida" de Virgílio sobre "terríveis guerras e muito sangue espumando no Tibre".

 

As invectivas de Powell ensombraram o debate sobre a revisão do Race Relations Act de 1965, que acabaria por ser aprovada em Outubro de 1968, ilegalizando expressamente a recusa de alojamento, emprego ou acesso a serviços públicos por motivos de cor, raça, origem étnica ou nacional.

 

Edward Heath viu-se obrigado a expulsar Powell do governo-sombra conservador fazendo por ignorar como calara fundo em boa parte do eleitorado o discurso dos "rios de sangue".

 

Muitos trabalhistas viriam, depois, a atribuir a inesperada vitória conservadora nas eleições legislativas de 1970 ao embaraço do executivo de Harold Wilson ante a erupção virulenta do racismo nas polémicas sobre imigração.

 

O discurso de Powell em Birmingham foi um ponto de viragem e ainda condiciona querelas sobre identidade britânica, das nações que constituem o Reino Unido e as mutações sociais induzidas e aceleradas pela chegada de emigrantes.

 

No Reino Unido multiétnico - "chicken tikka masala" é tão "british" quanto "fish and chips" -, o último censo, em 2001, constatava que os brancos constituíam 87% dos 63 milhões de habitantes, mas as obsessões de Powell persistiam e acentuaram-se noutras perversões.

 

Do fracasso de políticas multiculturalistas, do choque de racismos de múltiplas origens e anti-semitismo, do confronto e ensimesmamento de comunidades étnico-religiosas alheias ou hostis a um regime laico, pluralista e democrático, das vagas terroristas jihadistas, nada de bom seria de esperar.

 

A dimensão política da perda de estatuto e competição no mercado de trabalho por parte de emigrantes legais e ilegais afectando, sobretudo, sectores de baixos rendimentos e qualificações, fora, entretanto, ignorada pelos governos trabalhistas após a chegada de Tony Blair  a Downing Street em 1997.

 

A partir de 2010, David Cameron, numa altura em que questões de segurança, violência sexista, religiosa e xenofobias antagónicas prevaleciam no trato da emigração de países islâmicos, assumiu, por sua vez, o compromisso de reduzir o saldo migratório anual negativo para menos de 100.000, quando o número de entradas superava as saídas em mais de 250.000.

 

O fracasso foi clamoroso e, no final de 2015, seis meses antes do referendo Brexit, o saldo migratório negativo atingia os 300.000, sendo que metade das entradas provinha de estados da UE.

 

Migrações laborais acabaram, assim, por envenenar ainda mais a conflituosa relação entre o Reino Unido e a União Europeia, tal como antes inquinaram os vínculos entre estados da Commonwealth.

 

A ministra do Interior, Theresa May, apostara, em 2014, na criação de um "ambiente hostil" para emigrantes ilegais, empenhando-se o seu ministério em substituir-se aos tribunais como instância de apelo das deportações impostas pelas autoridades.

 

O Serviço Nacional de Saúde e os bancos reforçaram o escrutínio a cidadãos oriundos do estrangeiro, enquanto empresários e senhorios a partir de 2016 viram igualmente agravarem-se multas e penalizações administrativas por emprego ou alojamento de ilegais.

 

A ignomínia do escândalo Windrush (do nome de um dos primeiros navios a trazer migrantes das Caraíbas ao abrigo do British National Act de 1948 que concedeu cidadania e direito de residência no Reino Unido aos súbditos da Coroa) é exemplar da tara administrativa de quotas para expulsão de indesejáveis e descartáveis.

 

Após a destruição administrativa dos registos de entrada de cerca de meio milhão de migrantes da Commonwealth oriundos das Caraíbas no pós-guerra, para suprir carências de mão-de-obra, o governo de Londres passou a exigir prova de direito de residência aos descendentes de pessoas chegadas antes de 1973. O assédio e hostilização administrativa à geração Windrush, no quadro da política de combate à emigração clandestina que acaba por atingir qualquer migrante legal, degenerou fatalmente num escândalo político para May e a sua sucessora no Ministério do Interior, Amber Rudd.

 

A arbitrariedade, a inépcia, a duplicidade e a opção pela mentira de Estado manifestas no escândalo Windrush demonstram os extremos a que pode levar a desorientação de um governo apostado na ilusão de soberania plena que alimenta o Brexit.

 

May e outros tentam ainda iludir que, por exemplo, a salvaguarda dos direitos de cerca de um milhão de britânicos residentes na UE obriga a aceitar a jurisdição do Tribunal do Luxemburgo quanto a direitos de mais de três milhões de cidadãos da UE no Reino Unido por período de oito anos após o Brexit de Março de 2019.

 

Soberania implica respeito e, por imperativo ético e razão de Estado democrático, nunca preto da Jamaica, mulata de Setúbal, sikh do Punjab ou branca de Cracóvia podem alguma vez ser encarados como gente descartável.

 

Jornalista

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