Opinião
A Catalunha cativa
O compromisso negociado em 1978 com a instituição de comunidades autónomas e o reconhecimento de "nacionalidades históricas" perdeu sentido.
Cativo de meus mortos e do meu nome, em muro me converto, caminho de mim mesmo.
Salvador Espriu
Pelo voto catalão, as eleições legislativas de Dezembro vão colocar na primeira linha o modelo do estado espanhol e uma revisão constitucional de contornos incertos.
O separatismo na Catalunha por algum tempo continuará a congregar burguesias conservadoras e frentes anticapitalistas, mas alguns ecos da história alarmam as direitas que aspiram à ruptura com Madrid.
Desde a revolta da Jamancia, em 1842, passando pelos combates da Setmana Tràgica de 1907 ou os confrontos fratricidas após a restauração da Generalitat em 1931, os braços-de-ferro entre as classes dirigentes e possidentes da Catalunha e Madrid sempre propiciaram extrema radicalização social e política.
A aliança independentista entre a Convergència Democràtica e a Esquerra Republicana dependente dos deputados da Candidatura d'Unitat Popular aparenta recriar velhas disputas temidas por autonomistas defensores do vínculo à monarquia.
Seja ou não sacrificado Artur Mas, mesmo que se imponha à esquerda da coligação Junts pel Sí Raül Romeva, a instabilidade governativa em Barcelona é uma condicionante nas negociações na Catalunha e com demais entidades da monarquia espanhola.
Dois, quatro e muitos mais
Para o Partido Popular não basta avivar velhos temores e, conforme advertiu o antigo chefe de governo José María Aznar, cinco derrotas consecutivas nas eleições europeias, andaluzas, autonómicas, municipais e catalãs obrigam a rever estratégias.
O excelente resultado de Ciudadanos de Albert Rivera confirma que os populares de Mariano Rajoy têm pela frente um adversário de respeito na área conservadora e liberal, enquanto os socialistas de Pedro Sánchez acalentam a esperança de conter a frente Podemos de Pablo Iglesias.
As eleições municipais de Maio, que marcaram também a queda da Izquierda Unida saldaram-se pela transferência de três milhões de votos do PP e do PSOE para Ciudadanos e Podemos, mas tendo conservadores e socialistas obtido 27 e 25% dos sufrágios, respectivamente, é crível que mantenham posições cimeiras em Dezembro.
As Cortes a saírem das eleições deste ano irão, assim, provavelmente, abrir uma nova fase de compromissos multipartidários com dinâmicas bem diferentes dos apoios pontuais de formações regionalistas ou autonómicas a socialistas ou conservadores característicos da política espanhola desde a década de 1980.
A unidade da nação
A dispersão partidária dificultará, contudo, uma revisão constitucional que obriga a maioria de 3/5 no Senado e no Congresso ou maioria absoluta entre os senadores e de 2/3 dos deputados.
A "indissolúvel unidade" da nação e o "direito à autonomia das nacionalidades e regiões", consagrados pelo compromisso constitucional de 1978, são abertamente contestados na Catalunha desde o chumbo pelo Tribunal Constitucional, em Junho de 2010, do Estatuto da Autonomia.
O Estatuto fora referendado favoravelmente quatro anos pelos catalães e, a partir do momento em que surgia a definição "Catalunha é uma nação", estava em causa muito mais do que a revisão da repartição de receitas fiscais e investimentos públicos.
O agravamento da disputa entre Madrid e Barcelona conduziu à ameaça de secessão e a negociação política continua bloqueada.
Rajoy persiste num imobilismo que recusa qualquer diálogo afincando-se aos preceitos constitucionais e o secretário-geral socialista afirma defender a transição para o federalismo para ultrapassar as "muitas disfunções do modelo autonómico", limitando-se a reconhecer as "singularidades" do território catalão.
Outro compromisso
O compromisso negociado em 1978 com a instituição de comunidades autónomas e o reconhecimento da Catalunha, País Basco e Galiza como "nacionalidades históricas", englobando também desde 1981 a Andaluzia, perdeu sentido.
Os estatutos autonómicos de Aragão, Ilhas Baleares, Canárias e Comunidade Valenciana autodefinem, igualmente, "nacionalidades históricas", enquanto a denominação "comunidades históricas" é reservada para Castela e Leão, Astúrias e Cantábria.
Além das "cidades autónomas" de Ceuta e Melilla, as 17 "comunidades autónomas" e 50 províncias da "nação espanhola" são herança de uma difícil negociação na transição para uma monarquia parlamentar, descentralizada, laica e civilista, o momento do celebrado "café para todos" do primeiro-ministro Adolfo Suárez.
Agora, chegou a altura de renegociar e a Catalunha, entre "la rauxa", o arrebatamento, e "el seny", a ponderação serena, lança tudo em discussão.
Vai é cativa de seus mortos e do seu nome, como intuiu um dos poetas maiores da língua catalã: "Presoner dels meus morts e del meu nom, / esdevinc mur, jo caminat per mi."
Jornalista