Opinião
A violação das massas pela internet
Evgeni Prigojin, empresário da restauração, "catering", propaganda e outras artes, nado, criado e alcandorado a milionário em São Petersburgo, surge como o espírito maléfico por trás da operação de manipulação russa das eleições presidenciais nos Estados Unidos.
Desde pelo menos 2014 um grupo ligado a Prigojin, conterrâneo e amigo pessoal de Vladimir Putin, terá criado sites, aberto contas com identidades falsas no Facebook, Twitter entre outras plataformas, e efectuado financiamentos ilegais de acções de propaganda no intuito de criar instabilidade nos Estados Unidos, segundo investigação conduzida por Robert Muller.
A Agência de Investigação da Internet (Glavset) de Prigojin, referida pela primeira vez em 2013 nos media russos como envolvida em acções de propaganda e contrapropaganda digitais, terá manipulado subrepticiamente cidadãos norte-americanos, sem consciência informada da sua participação em actos ilegais, de acordo com o inquérito do conselheiro especial do departamento de justiça.
Hillary Clinton, centro do desprezo e ódio declarados de Putin, surgiu como alvo principal das acções de desinformação no decurso da campanha para a eleição de 2016 e Donald Trump acabou como beneficiário inesperado, mas, independentemente de outras operações conduzidas por agências estatais russas, acentuar a cizânia política era o fito fundamental desta cabala.
"Tullius Detritus goes to Washington"
Degradada pela má-fé e protagonismo desvairado de Donald Trump, a trágica farsa em exibição poderia ter como título irónico "Tullius Detritus goes to Washington" - evocando o filme de Frank Capra (1939) e a "Cizânia" de Goscinny e Uderzo (1970) -, só que as implicações alastram para o vasto, expansivo e permissivo universo digital e assumem tons sinistros.
O leque de pressões por via política, económica e financeira, potenciando actos ilegais, acções subversivas por ameaça ou uso de força contra alvos tão diversos quanto infra-estruturas, redes de energia ou sistemas de saúde, convulsiona a internet.
Os oligopóligos Amazon, Google, Facebook - sediados nos Estados Unidos -, Baidu, Alibaba, Tencent - oriundos da China -, são faces visíveis de imensa concentração de transacções, dados pessoais e empresariais.
Para obstar à emergência de concorrência o poder destes conglomerados tenderá a aumentar graças à crescente conexão internet de objectos e transacções abrindo caminho à contestação de princípios de neutralidade e auto-regulação.
Soberania de Estado alargada ao controlo de servidores, acessos e transacções de capitais, mercadorias e informação no universo digital é genericamente aventada por Estados como a China e a Rússia, privilegiando censura ao invés da opção de cooperação e controlo de delito mediante acerto legal internacional, punição ou interdição pelos códigos nacionais vigentes.
Facebook é caso flagrante de incongruência e susceptibilidade a manipulações devido ao estatuto ambivalente que tenta preservar de canal neutro de transacção de mensagens (representando o alegado conteúdo noticioso cerca 5% do fluxo de contactos e mensagens), ainda que recolha provento publicitário por interacções indiferenciadas derivadas de particulares, empresas, instituições públicas e privadas.
China e Canadá optaram, entretanto, em Junho, por um acordo formal interditando ataques cibernéticos por via de entidades estatais, abarcando informação empresarial, mas a valia do entendimento aguarda prova.
Na abrangente anarquia digital, propiciada pela indefinição de imposições universais, legais e de facto, as propagandas vão, entretanto, valendo-se de chavões, palavras de ordem, símbolos taxativos, numa lógica clássica de valor provado alimentada por maldições, arrebatamentos e exigências prementes.
O digital e o tangível
Propaganda assente em simplicidade unívoca, dogmática, incontroversa, simplória, rebarbativa, omnipresente, propicia o condicionamento, na base de reflexos condicionados, na tese que fez época de "A Violação das Massas pela Propaganda Política", obra marcante do social-democrata russo, Serguei Tchakotin, nos anos da Segunda Guerra Mundial.
Numa veia radical outros acentuaram o tom apocalíptico à medida que, posteriormente, a televisão alargava uma putativa influência perniciosa, caso do austríaco Karl Pooper e do italiano Giovanni Sartori, e, na era digital, miramos um abismo inaudito de manipulações.
Inevitavelmente tudo o que gira na internet acaba por ter um impacto tangível e, compreensivelmente, Evgeni Prigojin criou, também, o Grupo Wagner, as hostes militares mercenárias ao serviço de Moscovo na Ucrânia e na Síria.
O Tullius Detritus do Kremlin semeia a cizânia e não dispensa a espada.
Jornalista