Opinião
A ruptura populista
Os populismos de extrema-direita estão ainda longe de um ataque frontal às instituições democráticas tradicionais ou estabelecidas no pós-guerra e nas transições democráticas das décadas de 70, mas acentuaram já uma guinada racista e xenófoba na Europa ocidental.
Geert Wilders em guerra contra o Islão e elites submissas a Bruxelas continuará afastado do centro do poder qualquer que seja o resultado das eleições deste mês, mas a sua retórica contaminou irremediavelmente a Holanda.
A ruína dos valores tradicionais das comunidades protestantes e católicas que definiam a partilha de poder, a secularização e descristianização acompanhadas do aumento da presença muçulmana (4% da população) e políticas multiculturalistas promovendo direitos de minorias, reavivaram velhos fantasmas de extrema-direita.
Na Holanda, como noutros estados desenvolvidos, a perda de estatuto, a diminuição de capacidade competitiva no mercado de trabalho e a estagnação ou redução de rendimentos foram ressentidas por muitos como traição a valores nacionais, agravadas pelo défice democrático da integração europeia.
Surgiu aqui terreno fértil para movimentos populistas em ruptura com o "status quo" e Wilders é caso exemplar.
Apela à unidade e homogeneidade de um povo impoluto, crisol de superiores valores morais da pátria, que alegadamente se reconhece num líder carismático capaz de dirigir o estado em comunhão directa com a nação.
Para arrostar contra os inimigos externos importa superar querelas motivadas por egoísmos partidários, alheios a um projecto de regeneração e grandeza, e extirpar elementos hostis ao corpo orgânico da entidade política que representará a nação, incluindo estrangeiros impossíveis de integrar em posições subordinadas.
Ao romper com os poderes institucionais estabelecidos, mobilizando o povo uno e impoluto, o líder populista aspira a desmantelar todo o sistema de democracia representativa, repartição, independência e equilíbrio de poderes executivos, legislativos e judiciais característicos de regimes democráticos.
É uma matriz de negação do pluralismo político a que tendem também outros grupos ultraconservadores de extrema-direita em busca de líderes carismáticos, caso do Jobbik (Movimento para uma Hungria Melhor) e que os distingue, aliás, de forças como o Partido dos Finlandeses, marcado por uma mescla de reivindicações sociais em que se reconheceriam esquerdistas do Syriza que, por ironia, governa aliado aos Gregos Independentes de extrema-direita.
A matriz populista sempre alimentou, de resto, mobilizações suportadas por retóricas de engrandecimento e emancipação das massas trabalhadoras: do peronismo argentino a partir da década de 40, ao "marhaenisme" (exaltação do camponês pobre) de Sukarno após a independência da Indonésia nos anos 50 até ao golpe militar de 1966, passando pelos desvarios de Hugo Chávez e Nicolás Maduro.
As oligarquias resultantes destes movimentos revelaram-se instáveis dado o personalismo autocrático e cleptocrático e por via da impossibilidade de gerarem crescimento económico sustentado capaz de alimentar clientelas políticas alargadas.
Já as políticas de redistribuição de receita de estado promovidas por Thaksin Shinawatra na Tailândia no início da primeira década do milénio, assumindo forte pendor populista, mas respeitando a instituição real, resultaram no fortalecimento da capacidade de consumo e reivindicação política de sectores populares tradicionalmente afastados das esferas de decisão.
Da insânia do Presidente filipino Joseph Estrada entre 1998 e 2001 só ficou má memória que não impediu, contudo, a recaída de pendor violento com a eleição de Rodrigo Duterte no ano passado.
O populismo de ruptura na Europa na vertente de extrema-direita é ainda e essencialmente protesto, sem força para ousar reivindicar o desmantelamento das instituições democráticas.
Ganha, contudo, terreno com Wilders, enquanto, a extrema-direita francesa, condicionada pelas regras da Quinta República, esquiva-se a assumir a ruptura em mote populista, levando, ainda assim, água ao seu moinho.
À esquerda, com laivo anarquista, o populismo do Movimento 5 Stelle cresce e ameaça em Itália.
Não há ruptura, por enquanto, mas a erosão é devastadora.