Opinião
A miragem de abastança
A actual vaga migratória da Primavera/Verão, ainda que inferior aos picos registados em 2015, é, de resto, suficiente para num contexto político de crescente intolerância à aceitação de refugiados e emigrantes económicos desencadear crises políticas de alto risco.
"Vamos indo por terras de França
nossa miragem de abastança
sempre de mudança
roendo a nossa grade"
José Mário Branco
"Por terras de França"/"Margem de Certa Maneira" (1972)
Não foi nem por vontade, nem por gosto que os mais de 600 migrantes chegados a Valência deixaram terras do Sudão, Nigéria, Eritreia ou Argélia para cruzarem o Mediterrâneo.
Africanos predominavam entre as nacionalidades declaradas pelos 629 migrantes recolhidos de alto-mar pelo Aquarius, contando-se ainda onze paquistaneses, três bengalis e um afegão.
É possível que a maioria dos requerimentos de asilo seja recusada pelas autoridades espanholas, sendo que muitos dos resgatados pelo navio fretado pela ONG alemã SOS Méditerranée expressaram a intenção de rumar a França.
Pedro Sanchéz recém-chegado à Moncloa ganhou, entretanto, créditos diplomáticos de curto prazo, enquanto o governo da coligação anarco-populista-direitista de Roma e o executivo socialista de Valleta optavam pela recusa peremptória de desembarque de modo a cortar pela raiz ambiguidades políticas.
Itália e Malta evitaram, assim, polémicas legais como as ocorridas em 2004 com as deambulações de um navio da ONG alemã Cap Anamur ou do cargueiro turco Pinar em 2009 com migrantes que acabaram por desembarcar na península italiana.
Para os demais estados da União Europeia e suas missões de patrulha no Mediterrâneo ocidental, a obrigação legal de salvamento em alto-mar continua, por seu turno, condicionada pela referência ao porto de desembarque mais próximo, Itália e Malta.
Acordos da UE para estancar entradas de migrantes, salvaguardando eventuais repatriações, como o estabelecido com a Turquia em 2016, ou a nível bilateral, entre Itália e entidades políticas na Líbia, em 2017, para conterem em limites razoáveis movimentos migratórios, apresentam resultados contraditórios.
Estratagemas e conivências com redes de exploração de migrantes e contrabando, potentados locais e forças políticas em conflito, apresentam resultados mitigados na Líbia e, inclusivamento, em estados com maior coesão política como Argélia e Tunísia, e geram a instituição e a exploração de campos de reclusão.
A actual vaga migratória da Primavera/Verão, ainda que inferior aos picos registados em 2015, é, de resto, suficiente para num contexto político de crescente intolerância à aceitação de refugiados e emigrantes económicos desencadear crises políticas de alto risco.
A coligação conservadora e social-democrata de Berlim surge na linha da frente apesar de desde 2014 ter vindo a classificar como países de origem segura - onde o cidadão não corre risco de perseguição pelo Estado - Sérvia, Macedónia e Bósnia-Herzegovina, Albânia, Kosovo e Montenegro.
O compromisso formalizado em Março para o quarto executivo de Merkel considerava alargar a definição de origem segura, recusando, consequentemente, asilo político a cidadãos da Argélia, Tunísia e Marrocos.
O líder cristão-social bávaro Horst Seehofer, tentando evitar perder a maioria da CSU ante a investida da extrema-direita, Aliança pela Alemanha, nas eleições estaduais de Outubro, ameaça Angela Merkel e o acordo Schengen.
A Baviera arrogar-se-ia, no entender de Seehofer, o direito de deportar candidatos a asilo que tivessem sido previamente registados noutros estados da UE, designadamente na vizinha Áustria.
Merkel pode exercer a prerrogativa de legislação federal sobre a matéria e tem em aberto a possibilidade de acordos pontuais com liberais do FPD ou os Verdes no caso de a CSU romper um acordo que define o bloco da direita na Alemanha do pós-guerra.
O desafio à chanceler deixa, ainda, em aberto o impasse de a UE não conseguir definir uma política coerente de contenção de emigração ilegal, contigentação de migrantes económicos e acolhimento de refugiados.
Vai longe a mera miragem de abastança doutras décadas.
Jornalista