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Eu também nunca teria ido à escola

Felizmente, os meus pais acreditavam em si próprios. No seu exemplo, e nos nossos neurónios. Acreditavam na força dos argumentos com que defendiam os seus valores, na fundamentação das suas convicções, e na nossa capacidade para aprender a esgrimir as nossas, mesmo em ambientes hostis.

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A notícia anda pelos jornais, pelas redes sociais com cartas abertas e petições, mas o essencial conta-se em poucas linhas: um pai impediu os dois filhos de 12 e 15 anos de frequentarem as aulas de Cidadania e Desenvolvimento, disciplina obrigatória. Faltas que a lei considera obrigarem o aluno a chumbar o ano. Neste caso dois, por uma série de peripécias, entre as quais o facto de a família ter recusado as tentativas da escola/agrupamento/ CPCJ/Ministério da Educação para encontrar uma solução. Foi-lhe proposto que substituíssem a frequência das aulas por trabalhos de projeto escolhendo, por exemplo, o tema da literacia financeira ou a declaração dos Direitos do Homem, mas o pai recusou, porque defende que o que está em causa é a disciplina em si, e o direito dos pais à “objeção de consciência”. Numa entrevista à revista Sábado afirma: “Não tem nada a ver com ideologia de género ou sexo. A mesma questão coloca-se em relação à solidariedade ou ao ambiente. São competências que entendemos que são competências dos pais, independentemente de estarmos a falar de ideologia de género, ambiente ou literacia financeira.”

O Ministério da Educação não teve outro remédio senão ser intransigente: sendo assim os alunos têm de chumbar, disse num despacho que uma providência cautelar entreposta pela família suspendeu. A guerra nos tribunais começou, e promete ser longa. Enquanto isto, toda a gente tem uma opinião. E eu não sou exceção.

Se o meu pai tivesse sido como este senhor, nunca me teria mandado à escola, ou pelo menos frequentar a disciplina de História, porque como historiador e inglês que era, discordava violentamente da forma como na escola portuguesa nos era ensinado o episódio do Ultimato. E tinha, sem dúvida nenhuma, recusado que eu continuasse no liceu nos anos quentes do pós-25 de Abril em que a ideologia entrava por todas as disciplinas, independentemente do nome. Católico convicto, não nos teria deixado pôr um pé numa sala de aula onde se dissesse que a “religião era o ópio do povo”. E se o meu pai fosse de uma etnia ou crença religiosa que defendesse que a escola não era para meninas, lá ficava eu em casa, porque a competência da minha mãe para os bordados era insuperável. Se alinhasse pelos criacionistas nunca teria estudado nem Ciências, nem Biologia, e caso fosse primo da Dona Branca, teria insistido em ser ele a “dar-me” literacia financeira.

Mas, felizmente, os meus pais acreditavam em si próprios. No seu exemplo, e nos nossos neurónios. Acreditavam na força dos argumentos com que defendiam os seus valores, na fundamentação das suas convicções, e na nossa capacidade para aprender a esgrimir as nossas, mesmo em ambientes hostis. Acreditavam, até, na nossa liberdade de escolher uma opinião diferente da sua. E tudo isto fora do horário escolar.

Porque sim, o que mais me confunde no histerismo de alguns pais — e nos movimentos e políticos que fazem destes casos bandeira — é a ideia que têm dos seus próprios filhos e dos adolescentes em geral, imaginando que precisam de ser defendidos ao limite (inclusivamente faltando às aulas) das “ideias perigosas”. Ideias que, num sopro, imaginam poder deitar por terra tudo aquilo que lhes ensinaram e que veem em casa, sejam sobre “sexo” ou sobre o “escândalo” de se entoar um cântico de missa na aula de música. Confunde-me que não desejem que os seus filhos, com o seu apoio, evidentemente, se treinem na escola a saber defender os seus pontos de vista. Sinceramente revelam muito pouca confiança nas suas “competências” para educar.

Porque se é verdade que o Estado não pode programar a educação de acordo com certa ideologia, filosofia ou estética, de modo a criar um pensamento único — e contra isso todos os protestos são bem-vindos — isso não significa que as ideologias, a filosofia ou a estética sejam postas fora dos conteúdos escolares. O que importa é que o sejam de uma forma aberta e plural de modo a fomentar o pensamento crítico. E o pensamento crítico só se forma se for exposto ao contraditório.

Nota: Não deixe de ler o Polígrafo sobre o “alerta” do deputado Nuno Melo, que nem acertou no nome da disciplina, chamando-a de “Sexualidade, Género e Interculturalidade”, as três palavrinhas que garantidamente inflamam os pais (às vezes com razão).

https://poligrafo.sapo.pt/fact-check/nuno-melo-alunos-media-5-retrocedem-2-anos-porque-nao-frequentam-aulas-de-sexualidade-genero-e-interculturalidade-confirma-se.


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