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A Champions League da covid

Da mesma maneira, o que pedem que nos mova não é a vergonha de deitar fora o controlo da pandemia, nem o preço que teríamos de pagar se fôssemos obrigados a um novo confinamento, mas o receio daquilo que “os outros” vão dizer de nós.

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Se oiço mais alguma das nossas cabeças de cartaz a apelar ao civismo dos portugueses  usando a ideia de que um retrocesso da pandemia desiludiria o mundo, dá-me uma coisinha má. Envergonhava-nos, dizem. Fazia-nos descer na consideração dos outros, acrescentam. Porque, como repete o Presidente da República, "somos os melhores", seja a propósito da covid, em junho de 2020, ou de uma vitória no futebol, em junho de 2019.

 

Desde a primeira hora que apregoam variantes de "Vamo-nos portar bem para mostrar aos estrangeiros como é que estas coisas se fazem", com sessões diárias de comparação dos nossos números com os de "lá de fora", muitas vezes comparando absolutos com relativos para produzir mais efeito, abrilhantadas por reproduções constantes das referências da imprensa mundial à forma conscienciosa como os portugueses se meteram todos em casa.  Já conquistado o título de "Melhor aluno da Europa", passámos a glorificar-nos com o título de "Campeões do Combate à covid", e se é verdade que alguns países manhosos não nos incluem na I Liga, aquela formada pela Áustria e uns amigos, e outros nem nos querem dentro das suas fronteiras, como os gregos, não há para isso outra explicação que não a inveja. Mas estamos seguros de que, no final, terão de dar o braço a torcer e entregar-nos a taça.

 

Sem campeonato da Europa, nem tão-pouco o Mundial para exercitar a nossa necessidade de provar aos outros quem somos, criámos este ano a Champions League da covid que nos permite saciar este desejo de validação externa. Não nos congratulamos pelos nossos bons resultados porque significam que demos conta do recado, nem os divulgamos "lá fora" porque podem ser uma mais-valia para atrair de novo o turismo, mas na esperança de que os outros reparem neles e abram a boca de espanto. Da mesma maneira, o que pedem que nos mova não é a vergonha de deitar fora o controlo da pandemia, nem o preço que teríamos de pagar se fôssemos obrigados a um novo confinamento, mas o receio daquilo que "os outros" vão dizer de nós. Ou porque, supostamente, vão admirar-nos um bocadinho menos, pondo em risco o título dos "melhores". E se alguém se lembra de publicar uma manchete a denegrir-nos, é um desgosto nacional, a que se segue um movimento de revolta - não contra a realidade, mas contra o facto de os outros terem dado por ela.

 

Quarenta e oito horas depois do Dia da Criança, num país onde a imagem do chefe de Estado está no inconsciente dos portugueses fortemente colada à do pai - do Infante D. Henrique a Marcelo Rebelo de Sousa, passando por D. Sebastião e Oliveira Salazar (não inventei isto, é tema de teses de doutoramento), talvez valesse a pena pensar onde nos leva um modelo educativo ancestralmente baseado na validação extrínseca (o elogio, a pancadinha nas costas, de alguém "europeu", claro), em lugar de um que investe na motivação intrínseca ("Tenho escolha, e escolho o caminho que serve melhor os meus valores e convicções). Porque, os filhos de pais que educam segundo a filosofia do "Se fizeres isto, dou-te aquilo", numa constante chantagem de estrelas e castigos, em lugar de acabarem crianças confiantes, tendem a ficar desorientadas quando a cenoura e o pau desaparecem. Falta-lhes a bússola interior, que produz segurança, autonomia, e acima de tudo identidade. 

 

Não são capazes de encolher os ombros quando um atrasado mental os insulta, nem aceitar uma crítica, sem caírem no outro extremo, o do "não presto para nada".

 

Há uns anos, quando recebeu o Prémio Fernando Pessoa, o agora cardeal-patriarca de Lisboa, historiador e um homem de génio, referiu-se a esta bipolaridade nacional (palavras minhas), dizendo que alternávamos entre os queixumes de sermos os mais pequeninos da Europa, a quem ninguém presta atenção, e a gabarolice de nos proclamarmos os maiores do mundo, a quem a humanidade tudo deve (do chá à Índia). Decididamente, podíamos aproveitar a pandemia para mudar de agulha.

 

Jornalista

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