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23 de Abril de 2021 às 09:40

A América mexe com o mundo

Deixar de ter “boots on the ground” (botas no chão) é também, há muito, um objetivo tendencial de Washington. As memórias do Vietname ou do Iraque não fazem parte de um património afetivo do imaginário americano, ao contrário da Segunda Guerra Mundial.

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Já por aqui se refletiu sobre o caráter determinante que a mudança de um Presidente americano assume sempre na ordem global. Nenhuma alteração de liderança, em qualquer outro país do mundo, cria tanta expetativa e concita tanta atenção. A razão por que isso acontece é óbvia: muitas das orientações oriundas de qualquer que seja o titular da Casa Branca refletem-se nos vários cenários estratégicos internacionais.

Biden foi acolhido com o alívio de quantos esperam ver a América regressar a uma certa forma de “business as usual”. A maioria anseia ter uns EUA previsíveis na sua postura, face às grandes questões mundiais, ao invés dos humores cíclicos de uma figura, que oscilava entre o caricato e o irresponsável.

Dito isto, convém nunca esquecer que um Presidente americano é, essencialmente, um Presidente dos americanos e dos seus interesses – e esses interesses nem sempre coincidem com os dos outros. Por isso, para além da simpatia e da expetativa amável, o mundo vai ter de se confrontar, adaptando-se ou não, a uma nova ordem que aí virá. E os EUA, podendo conversar com os seus aliados, habituaram-nos já a não pactar as suas grandes decisões estratégicas.

No campo internacional, já se começaram a perceber algumas coisas essenciais.

Desde logo, que a China é o inimigo estratégico e que os EUA tudo farão para coligar, à sua volta, o conjunto de vontades que possa ajudar a isolar o poder de Pequim. Tendo criado a noção, provavelmente certa, de que, no tempo de Trump, a América perdeu tempo, que a China utilizou para reforçar o seu poderio e capacidade de afirmação, Biden não quer desperdiçar a oportunidade de se colocar, muito rapidamente, à frente dos aliados asiáticos da América, na resistência à nova assertividade chinesa. Quando utiliza, cada vez mais, a expressão “indo-pacífico”, Washington assinala querer cooptar para esse seu esforço o parceiro essencial que é a Índia. É por aqui que, tudo o indica, vai passar o esforço político, diplomático e militar, que estará no centro da administração Biden.

Deixar de ter “boots on the ground” (botas no chão) é também, há muito, um objetivo tendencial de Washington. As memórias do Vietname ou do Iraque não fazem parte de um património afetivo do imaginário americano, ao contrário da Segunda Guerra Mundial.

As ameaças aos adversários são feitas, cada vez mais, de outra forma e Biden – como já tinha acontecido com Obama e mesmo com Trump – pretende corresponder à vontade, que se sabe muito expressiva, da opinião pública americana de ter o mínimo possível de tropas no exterior, em especial em zonas de risco efetivo ou potencial. A confirmação da decisão de sair do Afeganistão, que se soma ao continuado “desengajamento” no Médio Oriente, vai nesse sentido. Isso compensará, com certeza, a necessidade de presença em outros teatros simbólicos, como a Alemanha ou a Coreia do Sul.

Interessante, neste desenho estratégico, é, contudo, a conflitualidade – que quase parece estimulada – com a Rússia. Onde Trump mostrava tibieza e até uma estranha cumplicidade, Biden faz renascer aquilo que foi a linguagem mais jingoísta do tempo de Obama. O regresso da Ucrânia à primeira linha de alguma mobilização, retórica e não só, acarreta, contudo, consequências que não são despiciendas para a própria unidade das vontades europeias. Sabemos bem que, no seio da União Europeia, o discurso face à Rússia não é necessariamente unívoco. A questão do gasoduto Nordstream 2, que é uma obsessão estratégica americana, é, por exemplo, um problema sério de decisão para uma Alemanha que atravessa um complexo ano eleitoral. Mas há bastante mais.

Ainda na Europa, e tendo começado por sossegar os seus aliados quanto à continuidade do seu interesse na NATO, os Estados Unidos irão, quase como contrapartida, forçar uma maior clareza face à questão chinesa. A ausência do Reino Unido no processo de debate intraeuropeu neste domínio não facilita as coisas para Washington, mas este promete ser um tempo nada fácil em Bruxelas.

Trump deu à Europa muitas dores de cabeça? Biden vai-nos colocar equações bem complicadas para resolver. Vão ver!

 

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