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27 de Fevereiro de 2018 às 20:41

Quando David cospe na cara de Golias

Crianças são cruéis, são capazes de se organizar em bandos e não têm medo de dedos em riste e caras feias. Crianças são piores do que hippies barbudos com flores em punho. Crianças não têm problemas de se atirarem contra canhões.

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A história só existe quando analisada à distância. É preciso de luneta mais do que de lupa. Analistas do quotidiano (inclusive eu) são falhos em identificar quando o jogo vira, o andamento muda e a revolução estala.

 

Em 2014, o governo de São Paulo aumentou as passagens de autocarro em 20 centavos de real (valor residual mesmo para os padrões brasileiros). Alguns grupos começaram a protestar contra o aumento. Em efeito dominó, uma sucessão de eventos acabou por paralisar o país, levar milhões de pessoas às ruas, abalou o sistema político, tirou o governo Dilma do seu prumo, radicalizou posições à direita e à esquerda, seguiu para eleições polarizadas, culminou num "impeachment".

 

Não são totalmente claras as relações causais entre cada um dos acontecimentos acima. Falta tempo, logo, falta história. Mas, insisto, as coisas seriam diferentes se não fossem aqueles 20 centavos.

 

Ao ver os jovens da Florida organizarem um levante nacional contra o excesso de liberdade na comercialização de armas, sinto que nada mais vai ser o mesmo na política americana.

 

Quem acredita que se trata de uma empolgação passageira, que o "lobby" das armas e os políticos do sistema vão contornar os arroubos juvenis de um bando de miúdos mimados, está enganado.

 

Assim como as mulheres do "Me Too" e do "Time's Up" estão longe de voltar para a cozinha, os imberbes e borbulhentos sobreviventes do massacre de Parkland são a maior ameaça que os lunáticos da NRA (National Rifle Association) jamais imaginaram enfrentar.

 

Diferente dos adultos, os miúdos não têm nada a perder: nem emprego, nem posição na sociedade, nem contratos, nem promoções, rigorosamente nada. Eles estão-se nas tintas para o que os velhos pensam, eles identificaram um problema, uma injustiça, uma calamidade pública, uma ofensa ao bom senso e prometeram: não vão largar o osso até as coisas se alterarem.

 

Até Donald Trump num primeiro momento sentiu um frio na espinha. Não há nada mais perigoso do que um adolescente armado até os dentes de um ideal. Mas foi sol de pouca dura. Afinal, Trump é Trump, nada a fazer.

 

Quando um jovem de 16 anos, numa transmissão ao vivo pela CNN, olhou na cara do senador Marco Rubio e perguntou com todas as letras se ele era capaz de recusar dali em diante o dinheiro da NRA (a resposta foi uma aula de política hipócrita e à antiga do, presumo, futuro ex-senador), um muro de Berlim imaginário caiu.

 

Quando um grupo de grandes empresas (Delta Airlines, Hertz, MetLife, Unite Airlines, entre outras) cortou publicamente os acordos comerciais que tinham com a NRA, a bola de neve continuou a rolar.

 

O comediante Trevor Noha, do Daily Show, fez uma análise brilhante do que se está a passar. Ele diz: "Esses jovens foram educados a acreditar que são especiais, que podem mudar, que as suas vozes contam. Eles não vão parar de gritar por mudanças. Eles querem falar com o gerente e exigir reparações."

 

Crianças são cruéis, são capazes de se organizar em bandos e não têm medo de dedos em riste e caras feias. Crianças são piores do que hippies barbudos com flores em punho. Crianças não têm problemas de se atirarem contra canhões.

 

Os velhinhos da NRA (e os seus porta-vozes aprumados em fatos Armani) são tão arrogantes que não perceberam ainda nada de nada.

 

Vem aí mais um "round" da eterna luta de David contra Golias. Eu já fiz as minhas apostas.

 

Ou como diria o meu Tio Olavo: "Quando David viu o tamanho de Golias em vez de ficar com medo apenas pensou: 'Ele é tão grande que vai ser fácil fazer a mira.'"

 

Publicitário e Storyteller

 

Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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