Opinião
O Facebook não ama ninguém
Nunca vi alguém desculpar-se nas redes e ser perdoado. Assim como nunca vi um millennial declarar-se enganado ou, ao menos, ter exagerado na exigência num altíssimo grau de virtude dos outros.
Nos dias seguintes à sua morte, Karl Lagerfeld foi declarado por Jameela Jamil como nada mais do que um "misógino implacável e gordofóbico".
Antes que me perguntem quem é Jameela, respondo. Trata-se de uma jovem atriz secundária na brilhante série "The Good Place", que pode ser vista na Netflix. Jameela é boa a fazer comédia. E a sua personagem é importante no contexto daquela sitcom, que fala sobre a morte e a necessidade de uma segunda oportunidade para nos redimirmos do mal que fizemos na vida.
Mas Jameela não acredita em redenções. Aqui se faz aqui se paga, teoriza ela. E avança: está farta de ver atos horrendos de personalidades famosas serem branqueados após os seus falecimentos.
A internet, um pouco por todo o mundo, reverberou os comentários de Jameela. Li muitas notas, pequenas notícias e muitos posts nas redes sociais acompanhados por comentários tão implacáveis quanto o da rapariga.
Karl Lagerfeld era um monstro, vaticinaram os usuários do Facebook. Fiquei apenas sem perceber o porquê.
Num exercício antropológico, recusei a ser eu mesmo a pesquisar a biografia do estilista. Achei que em algum momento leria uma descrição cabal das terríveis ações perpetradas por Lagerfeld. Mas não apareceram. Apenas li comentários sobre o quanto ele era déspota no trabalho e insensível quanto à feiura alheia. Bem, até há pouco tempo, para ser monstro era preciso ter morto ao menos uma meia dúzia de seres humanos e alguns gatinhos.
Mas as redes sociais não querem saber disto. "O Facebook não perdoa", diz-me um amigo. Levo algum tempo a explicar que o Facebook não é uma pessoa, logo é impreciso atribuir a ele verbos de sentimento.
O certo é que, assim como Mickey Mouse nunca foi um rato, há muito que o Facebook deixou de ser um site e passou a ser percebido com um ser humano. Trata-se de um antropomorfismo 2.0 que, com a chegada da internet das coisas, anda a pulular por aí.
As redes sociais ganharam a forma de uma terceira pessoa na nossa relação com o outro. Há o nós, o eles e os algoritmos das redes pelo meio; são elas, as redes, que validam as nossas experiências, que declaram se o que vivemos realmente existiu e foi importante.
No seguimento, temos uma nova tendência, a de promover as emoções mais duras e básicas, as reações mais radicais e infantis. Nas redes, somos todos crianças malcriadas de seis anos.
Só isso justifica a maneira implacável de Jameela de se relacionar com a notícia da morte de um idoso, seja ele famoso ou não, boa ou má pessoa.
Ela ainda comenta que o perdão só seria possível se Karl tivesse pedido desculpas públicas por seus atos durante toda uma longa vida. Trata-se de uma posição sonsa. Nunca vi alguém desculpar-se nas redes e ser perdoado. Assim como nunca vi um millennial declarar-se enganado ou, ao menos, ter exagerado na exigência num altíssimo grau de virtude dos outros. Assim como não ama, o Facebook não tem comiseração. Que pena. Acho "perdoar" uma das palavras mais bonitas e mais úteis do dicionário.
Ou como diria o meu Tio Olavo, a citar os versos de Zeca Baleiro: "Melhor é dar razão a quem perdoa/Melhor é dar razão a quem perdeu".
Publicitário e Storyteller