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07 de Outubro de 2020 às 18:01

É melhor ser alegre que ser triste

Precisamos de mais Papas que saibam citar Vinicius (e Pessoa e O’Neil e Drummond e Camões). E também de mais políticos, médicos, gestores, engenheiros com igual cultura e sentimento.

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Para que serve a poesia? A resposta mais ouvida é que para nada serve. “Poesia não enche a barriga”, já dizia aquela nossa vetusta tia. Frase que, por acaso, tem uma rima, mas não tem uma solução.

Para que ser serve a poesia? Repito, exijo resposta. Embutida na questão existe outra, oblíqua, dissimulada, com olhos de ressaca: para que servem os poetas?

A resposta vai dar quase ao mesmo. Desde cedo aprendemos que os poetas são supérfluos, descartáveis, inúteis em momentos de guerra e de fome (e quando é que não estamos à beira da guerra ou no precipício da fome?).

Se a poesia desse em profissão teria uma faculdade só para si, um diploma, um sindicato. Haveria greve de poetas, a polícia a controlar perigosos escribas, ensandecidos, a lutar por questões salariais, a escrever redondilhas de protesto com tinta vermelha pelas paredes da cidade.

Mas poetas não fazem passeatas, não contribuem para o PIB, não produzem bens de primeira necessidade, aliás, ao contrário, costumam consumir os poucos bens que herdam e terminam quase sempre a depender da caridade alheia.

“São cigarras”, dizemos nós, as formigas, num despeito mal disfarçado.

Assim, quando o Papa, ele mesmo, o representante de Deus na terra, lembra-se de citar um poeta, fico entre o surpreso e o assustado (duas palavras parecidas, mas não sinónimas, como bem sabem os bardos).

Domingo passado, o Papa Francisco divulgou uma nova encíclica, intitulada “Todos Irmãos”, onde pede o fim do dogma neoliberal. Numa determinada passagem, ele cita o “Samba da Benção”, de Vinicius de Morais, reproduzindo o trecho: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”.

Que este Papa é pop já estava claro. Agora descubro que ele também é cult. Citar Vinicius, um pecador feliz e contumaz, uma personagem dionisíaca, um promotor da luxúria, da gula (nem que seja por whisky), enfim, de todos os prazeres terrenos, é algo com um quê de divino.

Acho que foi Pablo Neruda que disse que “os poetas odeiam o ódio fazem guerra à guerra”. Talvez esteja aí a resposta que eu procuro. Odiar o ódio deveria ser uma função reconhecida pelo Estado, com direito a ministério e tudo.

Se isto fosse assim, os responsáveis máximos do ódio ao ódio já teriam até inventado um vocábulo novo para significar tal sentimento, o primeiro passo, como sabemos, portugueses que somos, os inventores da “saudade”, para que as coisas existam e sejam importantes.

Precisamos de mais Papas que saibam citar Vinicius (e Pessoa e O’Neil e Drummond e Camões). E também de mais políticos, médicos, gestores, engenheiros com igual cultura e sentimento.

Somar dois mais dois qualquer smartphone faz em menos de um segundo. Mas a Siri ainda não sabe escrever coisa como: “É melhor ser alegre que ser triste / Alegria é a melhor coisa que existe / É assim como a luz no coração”.

E como diria o meu Tio Olavo, a parafrasear o tio Vinicius: “A bênção, Papa Francisco. A bênção, poetinha. A bênção, meus leitores. Saravá!”

 

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