Opinião
Dois estranhos no ninho
Já eu agradeço a Milos Forman tudo o que escreveu e filmou. E o mundo também. Talvez até mesmo o Martin Sorrell. Pensando bem, não. Ele não deve gostar de cinema.
Ligaram-me do Expresso a perguntar sobre a demissão do Martin Sorrell, líder da WPP, um grande grupo multinacional de publicidade. Não me ligaram do Expresso (nem de nenhum outro jornal, diga-se) a perguntar sobre a morte do Milos Forman, um dos grandes génios do cinema do século XX e um dos meus autores preferidos.
Tenho pena de que o mundo me associe a um ex-patrão (fui vice-presidente da filial portuguesa de uma das centenas de empresas de Martin) e não a um homem tão interessante como Forman.
Quando cheguei à publicidade, Martin ainda era considerado um arrivista que, ninguém percebia como, tinha transformado uma empresa que explorava anúncios publicitários em carrinhos de supermercados numa "holding" dona de uma marca tradicional como a Ogilvy (agência fundada por David Ogilvy, para muitos o verdadeiro Mad Man).
Forman teve uma vida atribulada. Checo, emigrou nos anos 60, muito devido às questões políticas do seu país de origem, para a Hollywood. Lá, dedicou-se a fazer obras como "Voando Sobre um Ninho de Cucos", em Portugal, "Um Estranho no Ninho", no Brasil, "Amadeus" e "The Man in the Moon". Foi um cineasta bissexto. Produzia um, no máximo dois filmes, por década. O oposto de alguém que pense a indústria cinematográfica como uma máquina de fazer dinheiro.
Fazer dinheiro. Durante os 33 anos que Sorrell esteve à frente da WPP parecia que esse era o único real objetivo da companhia. Não era um tipo simpático nem agradável ao contacto. Tinha cara de mau. Talvez fosse, não sei. Mas era temido por muitos dos milhares de funcionários. Bastava lembrar do seu rosto sisudo (ou, pior ainda, da careta que fazia quando tentava sorrir) para esforçar-me ainda mais por valer o dinheiro que era gasto no meu salário. Não o culpo por isto. Capitalismo é capitalismo. Publicidade não é uma festa entre amigos hippies.
Hippies. O filme que mais vezes vi na vida foi realizado por Forman: "Hair". Fiquei encantado logo no primeiro contacto (uma narrativa musical sobre a contracultura americana antiguerra do Vietname). Entrei no cinema na sessão das 12:00 e só saí às 23:00 quando a sala fechou. Vi sessões seguidas e voltei nos fins de semanas seguintes enquanto o filme esteve em cartaz. Pelas minhas contas assisti a "Hair" umas 30 vezes (voltei a ele ao longo dos anos, nomeadamente quando lançado em VHS e depois em DVD).
"Hair" falava sobre a utopia de viver num mundo menos materialista e mais divertido (ou "porra-louca", expressão brasileira intraduzível). A personagem central era um tipo certinho que era levado na onda hippie. Ele parecia comigo (jeito, não fisionomia). Já o hippie líder era praticamente sósia de um grande amigo meu. Não dava para não fazer os paralelos. "Storytelling" é isto: conseguir conexões emocionais com a audiência.
Martin Sorrell disse que não está acabado, que andará por aí como um Dom Sebastião à espera de ser consultado sobre quais são os destinos da publicidade. Lamento, mas não vejo grande utilidade na coisa. Rico, aliás, muito rico. Sorrell deveria gastar um pouco do seu dinheiro em filantropia ou, sei lá, drogas leves. Ganhou muito. Mas construiu um império estranho onde ninguém parece minimamente agradecido a ele.
Já eu agradeço a Milos Forman tudo o que escreveu e filmou. E o mundo também. Talvez até mesmo o Martin Sorrell. Pensando bem, não. Ele não deve gostar de cinema.
Ou como diria o meu Tio Olavo, citando um desconhecido: "A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, chore, dance e ria antes que a peça termine sem aplausos."
Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico