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05 de Maio de 2021 às 19:50

Cada um tem o apocalipse que merece

Suspeitamos de que o apocalipse anda por aí disfarçado de vírus, de célula terrorista, de crack, de glúten, de colesterol, de algoritmo nas redes sociais. O apocalipse aparece-nos como um doce veneno da modernidade.

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Imediatamente após a Segunda Guerra, o Ocidente vivia temeroso com a infiltração de agentes comunistas. Isto ajudou a prosperar narrativas que falavam de marcianos disfarçados de pessoas comuns. O inimigo estaria camuflado na sociedade, à espera da hora de dizimar o “american way of life”.

Quem viveu a Guerra Fria teve pesadelos com explosões atómicas. Bastaria uma alta autoridade em Washington ou Moscovo acordar com uma ressaca mais forte e a Terra iria pelos ares.

Reflexo dessa época, o livro Geração X, de Douglas Copland, apresentou todo um catálogo de medos de quem tinha mais de 20 anos na década de 90. Um bom paralelo seria o filme “Until The End of The World”, de Win Wenders. Ambas as ficções, como infinitas outras, esclareciam que o mundo acabaria só porque sim, porque é inevitável. O fim viria sempre pela mão do Homem, o que não deixa de ser um sinal de arrogância da nossa espécie.

Os filmes de catástrofes até marcaram os anos 70 e 80, mas os desastres resumiam-se a prédios em chamas ou terremotos em cidades localizadas ou algum animal tresloucado a devorar meia dúzia de pessoas (“Tubarão” era pouco mais do que isto).

A pandemia nos permite um novo ponto de vista sobre o fim do mundo. Esta é uma das explicações do sucesso da longa “Love & Monsters”, hit do momento na Netflix.

“Love & Monsters” tinha tudo para ser um mau filme. Mas é ótimo. Na obra, a humanidade se une para enviar foguetes para o espaço com a missão de explodir um asteroide. Conseguem, mas a radiação e os químicos usados nos explosivos regressam ao planeta e provocam a mutação de insetos, moluscos, répteis e plantas. Agora gigantes, eles assumem o controlo do mundo. 95% da humanidade é dizimada em poucos dias. Passados sete anos do apocalipse, Joel Dawson (Dylan O’Brien) vive num bunker e reconecta-se via rádio com Aime, uma namorada da escola. Ela está noutra comunidade, a quase 130 km de distância. Apaixonado, Joel decide enfrentar os perigos e vai a pé ao encontro de Aime.

Trata-se de uma comédia de ação que tem o coração no lugar certo: dá para rir, se emocionar e ainda faz pensar. Tem tudo a ver com a nossa experiência no confinamento e com o que virá quando pudermos existir fora dos nossos casulos.

Essas e outras ficções atuais apontam para o desconforto que vivemos. Suspeitamos de que o apocalipse anda por aí disfarçado de vírus, de célula terrorista, de crack, de glúten, de colesterol, de algoritmo nas redes sociais. O apocalipse aparece-nos como um doce veneno da modernidade. Distorce tudo o que vemos até ao dia em que não veremos mais nada.

Ou como diria o meu Tio Olavo: “O fim do mundo não é mais nenhum fim do mundo.”

 

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