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21 de Agosto de 2018 às 20:45

Aretha Franklin e a arte de negociar 

O canto depois de solto não volta garganta adentro. Assim, nada mais correcto do que assegurar-se de que não sofrerá um calote. Quem quiser música de graça que cace um sabiá.

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Consta que Aretha Franklin teria, até ao fim da vida, exigido sempre os pagamentos dos seus cachês adiantados. A regra era simples: primeiro recebia, depois cantava.

 

Não vejo nem sombra de mercenarismo em tal atitude. O canto depois de solto não volta garganta adentro. Assim, nada mais correcto do que assegurar-se de que não sofrerá um calote. Quem quiser música de graça que cace um sabiá.

 

A história acima faz-me lembrar de outra, atribuída a um sem-número de grandes actrizes, um pouco por todo o mundo. Reza a lenda que a tal diva (Eunice Munoz ou Meryl Streep) estava com uma peça em cartaz e, encontrada na rua por um conhecido, recebeu um pedido de oferta de um bilhete. A actriz revirou os olhos, pôs a mão sobre o ombro do pedinte e, desconsolada, porém firme, avisou: "Por favor, não me peça de graça a única coisa que tenho para vender."

 

Conto mais uma a propósito do mesmo tema. Um restaurante colocou um anúncio a oferecer o seu espaço para que um músico promovesse o seu trabalho à noite (eufemismo para tocar de graça durante os jantares). A resposta tornou-se viral na web: "Eu sou um músico, com uma casa grande, à procura do dono de um restaurante que venha a minha casa promover o seu trabalho ao fazer comida de graça para mim e meus amigos. Isto não aconteceria diariamente, mas a princípio em eventos especiais, os quais poderão se tornar em algo grande e diário, se a resposta for positiva. Preferimos carne de primeira e refeições exóticas e culturais. Está interessado em promover o seu restaurante? Então comunique-se connosco ainda hoje."

 

A dama do teatro brasileiro Fernanda Montenegro tem uma frase shakespeariana que usa muito para explicar as consequências do sucesso: "Lá vai a glória e o seu cortejo de horrores."

 

Um desses horrores tem que ver justamente com a quantidade infernal de solicitações para que sirva gratuitamente uma parcela do seu talento. Às vezes pode ser apenas um comentário ou conselho num baptizado ou fim de festa, mas também pode travestir-se de consultorias disfarçadas de concursos de ideias.

 

Para quem labora em publicidade é uma tragédia. Significa trabalho suplementar aquele que está contratado por quem paga os ordenados. Se não houver uma boa organização e planeamento é receita certa para fins de semana longe da família e noites mal dormidas.

 

O curioso: dizer não a um concurso soa quase como uma ofensa.

 

"Como assim não querem trabalhar de graça, quase sem prazo, com informações truncadas, sem acesso aos problemas reais da marca ou empresa, num grau de exigência acima do normal e abrindo mão dos direitos das ideias que me trouxerem? Considero isso uma afronta. Nunca mais vos falo!"

 

Até percebo que nalguns casos não há outra maneira de tratar do processo que não seja através de concurso. E, claro, já participei de vários em que havia muita boa-fé entre todas as partes envolvidas. Nem tanto ao mar, nem tanta à terra, já diziam os navegadores. Mas, outra verdade, a coisa já foi mais difícil.

 

A APAP (Associação Portuguesa das Agências de Publicidade, Comunicação e Marketing), sob a batuta firme da sua secretária-geral, Sofia Barros, tem feito um trabalho consistente em impedir abusos. Regras claras sobre os concursos foram estabelecidas e só não as cumpre quem não quer.

 

De qualquer forma, bem-haja a magnífica Aretha. Não bastava ser uma fabulosa cantora. Também sabia se valorizar. E isto, claro, é o primeiro passo para uma boa negociação.

 

Ou como diria o meu Tio Olavo: "Ninguém negocia a partir de um 'sim'. Quando alguém diz 'não' é que começa a verdadeira arte da negociação."

 

Publicitário e Storyteller

 

Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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