Opinião
O compromisso histórico
O país necessita de um Programa de Transição que não se limite a ser um mero programa de gestão de dívida, a curtíssimo prazo, mais ou menos cautelar, para solver os compromissos mais imediatos com os credores.
A economia e a sociedade portuguesas estão perante um duplo impasse. No plano interno, um elevado serviço da dívida conjugado com um baixo crescimento do produto interno nos próximos anos torna o problema quase irresolúvel. Este problema pode arrastar-se durante 20 anos, o tempo exigido pelo tratado orçamental para reduzir a dívida pública que está acima de 60% do PIB. No plano europeu, o impasse tem que ver com a orientação da política económica dominante e o quadro de instrumentos disponíveis, a saber: uma zona marco "travestida" de zona euro, um banco central mono-objectivo, um orçamento muito reduzido e refém de contribuições nacionais em perto de 75% do seu montante, a falta de um instrumento europeu de gestão conjunta da dívida soberana europeia. Este quadro de instrumentos é útil para economias já estabilizadas e em velocidade de cruzeiro, não serve para economias com graves problemas estruturais e muito instabilizadas como a portuguesa.
O país necessita de um Programa de Transição que não se limite a ser um mero programa de gestão de dívida, a curtíssimo prazo, mais ou menos cautelar, para solver os compromissos mais imediatos com os credores ou, pior ainda, um mero exercício de calculismo político para tomar vantagem no próximo acto eleitoral. Lembro, aqui, o acordo de coligação entre os dois maiores partidos alemães, SPD e CSU, num país que não teria, em princípio, essa necessidade mas que, mesmo assim, decidiu imprimir essa dinâmica à sua política interna e europeia. Por maioria de razão, esta dinâmica é imprescindível num país como Portugal. Deixo aqui algumas sugestões para um Programa de Transição Pós-Troika sob a forma de um decálogo para um Compromisso Histórico (ver meu livro, União Europeia, os bens comuns da futura Federação Europeia, Editora Colibri):
1.º Um programa de transição com um horizonte temporal de sete anos, 2014-2020, coincidente com o período de programação plurianual dos fundos europeus e alargado às duas próximas legislaturas até 2023.
2.º Um programa de redução estrutural da despesa pública, à volta de um 1% ao ano, para um patamar próximo dos 40% da despesa pública em 2020, de modo a libertar recursos para um programa de redução da carga fiscal, de tal modo que possamos estabilizar as suas regras para um período mais longo.
3.º A negociação de um programa de "reprofiling" da dívida pública, em especial os 78 MM de euros dos créditos Troika, cerca de 40% do actual stock de dívida, assente em três vectores: um período de carência de sete anos até 2020, um prazo de amortização até 2050 e um ritmo de amortização indexado à evolução nominal do PIB português.
4.º A negociação de um programa de contingência, para fazer face à instabilidade dos mercados financeiros, junto do Mecanismo Europeu de Estabilidade, em matéria de linhas de crédito e outras facilidades, e do programa de intervenção do BCE nos mercados secundários.
5.º A preparação de um Programa de Crescimento e Emprego para o período 2014-2020, que consagre não apenas o acordo político sobre um núcleo de investimentos de alto valor acrescentado como, também, o acordo-base sobre um regime de incentivos que coloque a fasquia dos bens exportáveis próximo dos 60% do PIB em 2020.
6.º A preparação de um programa de reformas para a coesão social; por um lado, intensificar o combate à corrupção, evasão e fraude fiscais e economia clandestina e, por outro, preparar um acordo político alargado no que diz respeito à reposição das medidas extraordinárias e transitórias que sacrificaram, neste período, os salários da função pública, as pensões e as prestações sociais.
7.º Um programa de reformas no aparelho de Estado: rever o sistema eleitoral e, sobretudo, reordenar o universo administrativo, empresarial e fundacional que gira na órbita do Estado; no plano político-administrativo, operar uma macrocirurgia na estrutura da despesa pública e uma microcirurgia nas áreas do processo e procedimento técnico e administrativo.
A este conjunto de medidas fundamentais, acrescento mais três propostas que devemos patrocinar no plano europeu: a União Bancária, uma Agência Europeia de Gestão do Crédito Público ou um Fundo Europeu de Redenção da dívida soberana e um Plano Delors para a União Mediterrânica, qualquer delas com impactos muitos positivos sobre a economia e a sociedade portuguesas.
8.º A finalização da União Bancária que tem óbvios impactos positivos sobre a solidez da banca, a redução da segmentação financeira nos mercados e a criação de condições de liquidez e crédito mais favoráveis.
9.º A criação de um instrumento de gestão conjunta da dívida pública europeia, seja sob a forma de uma agência europeia de gestão do crédito público ou de um fundo europeu de redenção tal como, de resto, já foi proposto pelo grupo de peritos que dá assessoria ao governo alemão.
10.º Um Plano Delors para a União Mediterrânica que represente, na actual conjuntura, um gesto magnânimo da União Europeia em direcção às duas margens do mediterrâneo, seja para recriar uma 2.ª versão dos Programas Integrados Mediterrânicos (PIM) ou para relançar em bases novas a iniciativa francesa de uma União para o Mediterrâneo.
Se formos capazes de conceber um pensamento estruturado em redor deste decálogo da negociação institucional teremos construído uma retaguarda política negocial muito mais sólida, não apenas para negociar o programa de transição pós-troika, mas toda a estratégia negocial que nos deve guiar no plano europeu.
Universidade do Algarve