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E nada pode ser tomado por adquirido pois os povos europeus conheceram, no século XX, as mais devastadoras das guerras dentro das suas fronteiras.

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Contava-se que, em Atenas, os cidadãos que se concentravam à entrada da Ágora eram incentivados a entrar para discutir os assuntos da cidade por dois escravos que, para o efeito, esticavam uma corda impregnada de tinta, caminhando, de seguida, na direcção deles e sujando a roupa de quem se demorasse a entrar. "Se non è vero" … 

 

Nada na Europa de hoje é fruto de uma realidade que possa ser tomada por adquirida pelos seus cidadãos.

 

Esse é certamente o caso do projecto político de integração europeia responsável pelo mais longo e mais profícuo período de paz e de prosperidade na Europa e referência civilizacional de respeito democrático pelas liberdades individuais.

 

E nada pode ser tomado por adquirido pois os povos europeus conheceram, no século XX, as mais devastadoras das guerras dentro das suas fronteiras.

 

E viveram, além disso, os mais terríveis exemplos de tudo o que se lhe contrapõe enquanto espaço de democracia, de liberdade e de respeito pela dignidade da pessoa: conhecem o totalitarismo, a xenofobia, a intolerância étnica e religiosa. Conhecem a "Shoa". Conhecem a depressão económica, o desemprego em massa, a emigração económica. Conhecem a fome.

 

Conhecem é o termo e não conheceram.

 

Uma parte substancial dos cidadãos europeus conhece-o porque o viveu e construiu a sua identidade pessoal em função dessa recordação. Outra habita o espaço marcado pelas suas consequências, numa comunidade forjada na sua memória. Conhece-o na narração, uma e outra vez, dos seus - dos seus conterrâneos, dos seus pais e avôs, dos seus companheiros de uma fé perseguida.

 

No espaço por si habitado, a integração europeia é, por isso, uma improbabilidade histórica. Um parêntesis. Uma excepção.

 

E, no entanto, a oportunidade de participação no processo deliberação política a uma escala europeia, mediante exercício do direito de voto, de pouco tem servido enquanto forma de apelo a uma pertença comunitária europeia capaz de tocar no fundo da alma de cada um dos seus cidadãos e de a tornar expressão de um nós.

 

No espaço mais qualificado do mundo, com níveis de bem-estar inigualáveis na história e com o pleno proveito dos mais elevados níveis de instrução populacional, o direito ao voto, paradoxalmente, não espoleta a participação empenhada, crítica e exigente que aquelas condições existenciais deveriam impulsionar.

 

Da liberdade à europeia usufrui-se. Nada mais.

 

A liberdade assim dada por adquirida seca o espaço público europeu de sinais que sirvam de factores de activação daquele impulso cívico. Por isso, não se vota.

 

Mas os sinais deslocam-se desse espaço interior europeu e impõem-se de fora.

 

Estão nos que buscam entrar para dessa liberdade também poder usufruir e para poder ser do modo que apenas essas condições de bem-estar e de instrução permitem que se seja.

 

São os sinais que confrontam a Europa com o seu passado e lhe relembram a sua história.

 

Assim, na percepção disso que são os outros, nos encontramos connosco. Pensar em função deles é pensarmo-nos e fazê-lo é responder àquele impulso cívico.

 

Os outros são o apelo à escolha do que importa, seja no voto ou seja fora dele, porque é sempre a discussão disso que marca o coração da Europa.

 

Os outros são a corda que nos empurra. Só não nos sujamos se não nos demorarmos, se falarmos deles, porque eles somos nós.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa

 

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