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O segredo do défice de 0,9% é que não há segredo

O reporte enviado a Bruxelas ilustra como com uma economia a favor é possível fazer um brilharete no défice sem cortes ou mais impostos – e como se consegue baralhar a percepção política sobre as escolhas do Governo.

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Foi estranho ver tanta atenção mediática dada ao facto de o Eurostat ter metido a recapitalização da Caixa nas contas portuguesas e, com isso, o défice ter sido de 3%. Talvez tenha sido o próprio ministro das Finanças a gerar essa atenção ao afirmar que o "Eurostat errou" - Mário Centeno tem um ar bonacheirão, mas detesta perder e pode ser sulfúrico no debate de argumentos técnicos. A operação da Caixa já tinha entrado onde mais interessa, a dívida pública, e mesmo que levasse Portugal a furar o limite de 3% o país não entraria em incumprimento das regras europeias. Mais importante, por isso, é perceber que o défice sem essa operação teria sido de 0,9% do PIB - e tentar perceber como lá se chegou. É este o ponto de partida para a consolidação deste ano, um valor tão abaixo do previsto que significa que Portugal saltou um ano na rota a caminho da eliminação do défice.

 

O brilharete concentra-se em quatro gavetas. A principal é a Segurança Social, cujo saldo foi maior em 1.107 milhões de euros ao previsto no reporte anterior, enviado há seis meses a Bruxelas - é uma diferença enorme, um "bónus" que vale 0,6% do PIB. Depois vêm três com peso equivalente: o investimento público ficou 396 milhões de euros (0,2%) abaixo do comunicado a Bruxelas há meio ano, a factura com juros da dívida caiu 455 milhões (outros 0,2%) face ao previsto e as contas da administração central melhoraram 354 milhões de euros (outros 0,2%). Em ano de eleições, as câmaras não contribuíram como esperado - o excedente foi inferior ao previsto em 383 milhões (0,2% do PIB) -, caso contrário a festa teria sido maior.

 

Uma parte importante destas fontes de brilharete foram conseguidas por acção directa do Ministério das Finanças - quando decidiu investir menos do que o previsto, por exemplo; quando, em articulação com a agência que gere o crédito público, decidiu amortizar mais cedo o empréstimo caro ao FMI; ou, ainda, quando não libertou as famosas verbas cativadas.

 

Mas a maior parte da surpresa, contudo, não tem surpresa e parte de algo que o ministro não controla: o impacto da economia nas contas e a política monetária do BCE. Entre o reporte enviado há um ano pelo INE e o conhecido esta semana, há uma revisão em alta do PIB de 2.500 milhões de euros - é a diferença de crescer 2,7% em vez de 1,5%. Este vento a favor puxa pela receita fiscal e pelas contribuições (ficaram acima do esperado) e aperta despesas como o subsídio de desemprego - estas rubricas, que variam de forma automática e foram o inferno durante os anos da crise de financiamento, são agora vento a favor.

 

É sobretudo esta influência do ciclo que permite ao Governo esmagar o défice sem cortes - Centeno está a conter a dinâmica natural dos gastos em aquisições de bens e serviços, mas a única rubrica da despesa em que houve um corte foi a dos juros - e com um escasso alívio fiscal. A força da conjuntura baralha a percepção da política: se por um lado é o que permite ao Governo acomodar cedências controladas ao PCP e ao BE e vender o slogan do "fim da austeridade", por outro, Costa e Centeno escolhem não aproveitar a margem adicional para aumentar mais a despesa em áreas carenciadas ou para baixar impostos.

 

Devemos debater as opções dentro da restrição escolhida para o défice - é aí que a oposição se deve focar -, mas num país com um rácio de dívida de 126% do PIB é difícil de discordar do aproveitamento do ciclo para acelerar a redução do défice, mesmo que isso seja feito à custa da coerência política do PS, BE e PCP. Até porque o "segredo" da ajuda da conjuntura não dura para sempre - nessa altura, o ministro das Finanças terá de fazer mais do que limitar-se a conter e a observar.

 

Jornalista da revista Sábado

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