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António José Teixeira 17 de Novembro de 2017 às 13:00

Folha de assentos

Entre a descongelação de carreiras da função pública e a água fria da governação vai uma distância incerta. Portugal pode estar na moda, mas nunca deixou de ser frágil, muito endividado e desigual. Há alguns sinais encorajadores na economia e muitas distrações nos panteões. A factura continua pesada.

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frágil. Portugal está na moda, os turistas não param de chegar, há sol e boa comida, a confiança está em alta, o Governo é bom aluno europeu, estamos a crescer, o défice e o desemprego baixam… As boas notícias apagam a outra face: um País muito endividado, muito desigual e envelhecido, com baixa natalidade, recursos escassos, uma estrutura produtiva frágil, um território desequilibrado, um Estado exíguo… Basta olhar para a tragédia dos incêndios e para o surto de Legionella em estabelecimentos de saúde públicos para percebermos que a beleza portuguesa tem uma sustentação débil. O ministro da Saúde chocou a oposição ao dizer que "o país está pobre, velho e em muitas circunstâncias abandonado e entregue a si próprio". A ilusão de que o Portugal moderno tem muita riqueza para distribuir, de que o Estado garante todas as carências, não passa disso mesmo, de uma ilusão. É desconcertante ver aqueles que tanto contribuíram para a exiguidade do Estado clamar por mais e melhor serviço público. Tão desconcertante como os que fingem ignorar que a recuperação económica é demasiado curta para as facturas pesadas por pagar.

presidente. Marcelo Rebelo de Sousa declarou-se o presidente de todas as cervejas, de todas as águas minerais… Assinalava assim com boa disposição os 90 anos da Super Bock. Presidente só há um e Marcelo faz por isso. A sério e a brincar. Ou sempre a sério. Incansável, por ele passa toda a avaliação do que ganha relevância pública. Não há tema sem comentário. Marcelo é o barómetro político permanente. Não é por acaso. Trabalha para a reeleição e condiciona o jogo político. Não lhe convém um PS forte nem um PSD hegemónico. Não tem preferência por Pedro Santana Lopes ou por Rui Rio. Quis que Santana fosse candidato para não deixar o partido entregue apenas a Rio. Na primeira parte da legislatura ajudou o governo socialista porque sabia que não havia alternativa e o país não poderia ir de novo para eleições. Nesta segunda parte, os incêndios apagaram a vitória autárquica do PS e Marcelo percebe que o seu espaço se alargou. Tudo passa por ele.

propaganda. Uma equipa de especialistas da União Europeia detectou notícias falsas sobre a Catalunha, com origem na Rússia. É apenas mais um caso de intoxicação que tira partido das redes sociais e que pode revelar proximidades espúrias, como as que têm recaído em Putin e Trump. No Vietnam, durante a Cimeira da APEC, voltou a ilibar Putin: "Disse-me que não interferiu. Perguntei-lhe outra vez. Respondeu-me que não, absolutamente. Ele não fez o que dizem que fez. Cada vez que me vê, diz-me 'não o fiz' e eu acredito que o que diz é verdade". Comovente. Logo após a sua eleição, Trump confessou que não teria chegado lá sem o Twitter. Já os seus antecessores tinham explorado as redes sociais para convencerem os eleitores. A equipa de George W. Bush, na reeleição de 2004, constituiu a base de dados Voter Vault com perfis comportamentais, repartindo os eleitores em 30 categorias, cada uma susceptível de receber mensagens diferentes. Depois, Obama afinou os processos e o seu VoteBuilder permitiu construir modelos complexos com a ajuda de algoritmos. Os homens de Trump foram ainda mais longe, com muitos milhares de dados disponíveis sobre cada eleitor. Marketing sem fronteiras.

manipulação. Há quem diga que vivemos na era da grande manipulação, pois seremos fáceis de manipular. Expomo-nos muito, fornecemos todo o tipo de informações a nosso respeito e dos que nos são próximos, deixamos impressões digitais ao dispor dos colectores de dados. Só o Facebook classifica 98 tipos de dados, que vende aos anunciantes. Os "likes", por exemplo, são objecto de tratamento. Um centro psicométrico da Universidade de Cambridge concebeu um modelo de previsão alimentado por algoritmos, que dá resposta a variáveis como bem-estar, inteligência, orientação política… A vida privada deixou de ter um valor social reconhecido. Nem valor político. Hipotecamos a nossa liberdade em troca de facilidades que julgamos gratuitas. Recolhem-se volumes incomensuráveis de dados, tratam-se com ferramentas sofisticadas, permitindo-se o controlo público e privado de todos e cada um de nós. Ganham mercado os especialistas nas chamadas ciências do comportamento. Estudam as nossas relações, o que consumimos, as referências culturais e políticas, para perceberem como se movem, e se podem estimular, as nossas escolhas. A grande manipulação serve o comércio, o controlo do cidadão e a disputa do poder.

panteão. Levantou-se um coro de indignados porque o Panteão Nacional abriu as suas portas a um jantar de empreendedores. No tempo dos romanos, o panteão era um templo dedicado aos deuses. Depois, passou a ser um monumento destinado aos restos mortais dos heróis ou dos cidadãos mais ilustres. É o caso do nosso Panteão Nacional, antiga Igreja de Santa Engrácia. Aí repousam as cinzas de Garrett, Carmona, Humberto Delgado, Amália e Eusébio, entre outros. Há uns 15 anos que o Estado decidiu obter receitas com o aluguer de monumentos. Assim financia a conservação de património. Portugal não é original. Isso mesmo se faz noutros países. São muitos os palácios, museus e outros monumentos que acolhem festas e jantares. Acautelada a segurança e a dignidade dos espaços, resta o bom ou mau gosto das iniciativas. O livro "Harry Potter e a Ordem de Fénix", por exemplo, foi lançado no Panteão numa aula da escola de feitiçaria de Hogwarts! Compareceu meio milhar de fãs e não consta que tenha levantado escândalo. Desta vez, foram muitos os escandalizados, do primeiro-ministro aos partidos da esquerda e da direita. Nem o clero católico escapou. Pantear é sinónimo de zombaria, galhofa, chacota, já não dos deuses ou dos heróis, mas da triste figura de tantos indignados de ocasião.

máquinas. São muitos os receios e as ilusões que a evolução científica e tecnológica anuncia. Os robôs estão mais evoluídos, executam tarefas mais e mais complexas, relacionam milhões de dados, parecem pensar. Manuela Veloso, uma das mais influentes cientistas na área da robótica, interrogava-se há uns meses sobre a autonomia das máquinas, sobre a informação que acumulam e a lançava a dúvida sobre o que efectivamente sabem. O que aí está e aí vem anuncia uma nova era tecnológica com profundas mudanças sociais. As que já se notam no trabalho, com o recuo drástico do emprego, ou nas ciências da saúde, demonstram a enorme transformação em curso. Percebem-se os benefícios para o ócio, o que não se vislumbra é uma distribuição de rendimentos compatível. Calestous Juma, um especialista em inovação da Universidade de Harvard, defende que a inovação tende a aumentar a diferença de rendimentos: "As sociedades mais desiguais vão assistir a um aumento da desigualdade e provavelmente a maior resistência à inovação". Desigualdade gera mais desigualdade.


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