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A singularidade e a exclusão que a IA desencadeia

A evolução permanente e acelerada da IA irá interferir e mudar quase todas as dimensões da vida humana. No entanto, apesar de tomados por esta vertigem, de modo voluntário ou forçado, não devemos esquecer, de modo algum, que, enquanto a todo o segundo cativam para si vastos segmentos de utilizadores, os processos e produtos de IA são agentes de algumas exclusões fundamentais.
José Vegar 29 de Maio de 2024 às 10:30

A máquina, garantem-nos os seus criadores, financiadores e crentes, tem um poder esmagador de detetar e recolher dados e informação, de empregar o algoritmo para ordenar e padronizar aqueles, transformando-os em fonte, que, quando invocada, se transforma na melhor forma de conhecimento alguma vez disponível.

 

Calibrada com esta potência, que a cada milissegundo se torna mais poderosa, por força da acumulação de dados permitida pela tecnologia que a serve, a máquina considera-se apta e a mais indicada para partilhar todo o conhecimento de que o humano e os seus contextos, especialmente o existencial e o laboral, necessitam.

 

A máquina classifica-se como a melhor fonte existente para informar o humano sobre qualquer informação ou tema que este pesquise.

 

A máquina elege-se, também, como o melhor mestre do humano, seja para lhe ensinar a tirar um café, seja para o guiar no preenchimento de um formulário, seja para o aconselhar na tomada de uma decisão executiva de uma multinacional.

 

Até uma certa coordenada, a máquina não é dominada pela soberba nem sobrevaloriza a sua capacidade e função.

 

O momento de singularidade tecnológica que vivemos não é, de todo, do domínio do fantástico ou da especulação não sustentada.

 

A singularidade tecnológica foi primeira conseguida, na infraestrutura, pela evolução exponencial do processador, do armazenamento em nuvem e da extensão inacreditável da base de dados.

 

Foi depois atingida, no núcleo, pelo desenvolvimento das diversas tipologias de Inteligência Artificial, dos Modelos de Linguagem Extensos ("Large Language Models" - LLM), passando pela Aprendizagem Profunda ("Deep Learning") e pela Aprendizagem Automática ("Machine Learning"), e terminando na discutida Geral ("Artificial General Intelligence") que permitem, a partir do tratamento dos dados e da informação possuída, fornecer conhecimento, indicação ou proposta para execução de qualquer tarefa teórica ou prática.

 

Assim sendo, e assim será cada vez mais, muito rapidamente a máquina poderá ser realmente a matriz e o motor do mundo humano.

 

No entanto, a coordenada mais longínqua que a máquina atinge não é idêntica às múltiplas coordenadas do saber e da experiência humana.

 

A máquina depende inteiramente dos dados e da informação fixados em território digital, e da cultura dos que a moldam.

 

Logo na linguagem que processa, a máquina é dominada pelo inglês, e cada vez mais pelo chinês.

No conhecimento que agrafa e ordena, depende do que é injetado nas inúmeras paragens digitais e, por enquanto, por várias limitações na distinção de factualidade, relevo e profundidade da informação, seja textual, imagética ou sonora.

 

Por fim, simplificando tantas equações complexas, tem de encontrar modos e processos de código que tornem credível e fundamental os dados e a informação que liberta.

  

O saber e a experiência humana são-lhe superiores

 

O saber humano beneficia da acumulação de séculos e da constante revisão de dogmas e paradigmas, ou seja, da ciência, a linguagem de cada povo é por vezes intransmissível de modo automático, a execução e a decisão obedecem aos mecanismos desconhecidos da mente. 

 

É neste cruzamento que se irá jogar no futuro próximo o domínio da inteligência artificial em todos as dimensões da nossa existência nos perímetros pessoal e global.

 

Por outras palavras, estamos já envolvidos no confronto estratégico entre o que são as reais capacidades da máquina, a sua funcionalidade e utilidade para exercer guiamento e trabalho reservado aos humanos, e o que aquelas podem determinar de exclusão de cultura, de saber, de memória e de trabalho.

 

O confronto estratégico envolve Poder Global, propriedade da máquina e do seu produto, competição económica e, acima de tudo, triunfos e sobrevivências de culturas e modos de trabalho.

 

Neste ponto, é importante recordar que a construção teórica e aplicada de uma máquina tecnológica com as capacidades que aqui anotamos não começou há dois anos, com o lançamento do ChatGPT pela empresa OpenAI, que colocou em vórtice governos, políticos, empresas e cidadãos, mas, para referir somente o tempo moderno, com Alan Turing, na década de 50 do século passado.

Não devemos nunca confundir os produtos que as empresas de grande tecnologia tentam neste momento comercializar com tudo aquilo que a IA pode alcançar.

Há assim um percurso de décadas, feito em gabinetes teóricos e em espaços abertos de programação, que levou à criação do ChatGPT e de todos os outros códigos que neste momento concorrem desenfreadamente com ele, mas também, num nível mais silencioso elevado, ao desenvolvimento acelerado das potencialidades da inteligência artificial.

 

Não devemos nunca confundir os produtos que as empresas de grande tecnologia tentam neste momento comercializar com tudo aquilo que a IA pode alcançar.

 

De facto, os produtos disponíveis neste momento são apenas o começo do domínio da máquina.

 

É igualmente importante que entendamos os conceitos racionais básicos que movem a máquina.

 

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) lançou muito recentemente a definição mais consensual de IA, propondo que "um sistema de IA é um sistema baseado em máquinas que, para objetivos explícitos ou implícitos, infere, a partir dos dados que recebe, como gerar resultados, tais como previsões, conteúdos, recomendações ou decisões que podem influenciar ambientes físicos ou virtuais. Os diferentes sistemas de IA variam nos seus níveis de autonomia e adaptabilidade após a implantação".

 

A partir daqui, podemos entender melhor as várias tipologias de IA que neste momento são discutidas à exaustão por teóricos e políticos e usadas pelos tecnólogos.

 

A aprendizagem automática "é uma forma de inteligência artificial que pode adaptar-se a uma vasta gama de dados, incluindo grandes conjuntos de dados e instruções humanas. Estes algoritmos podem detetar padrões e aprender a fazer previsões e recomendações através do processamento de dados e experiências, em vez de receberem instruções explícitas de programação. Os algoritmos também se adaptam em resposta a novos dados e experiências para melhorar ao longo do tempo".

 

Já a aprendizagem profunda "é uma versão mais avançada da aprendizagem automática que é particularmente hábil no processamento de uma gama mais vasta de recursos de dados (texto, bem como dados não estruturados, incluindo imagens), requer ainda menos intervenção humana e pode frequentemente produzir resultados mais exatos do que a aprendizagem automática tradicional", já que "utiliza redes neuronais baseadas nas formas de interação dos neurónios no cérebro humano para processar dados através de múltiplas camadas de neurónios que reconhecem características cada vez mais complexas dos dados".

 

Por sua vez, os Modelo de Linguagem Extensos, nos quais se apoiam grande parte dos produtos de IA já comercializados, "são uma classe de modelos de base que podem processar grandes quantidades de texto não estruturado. Estes modelos podem aprender as relações entre palavras ou partes de palavras, também conhecidas como "tokens". Isto permite aos modelos de linguagem de grande dimensão gerar texto em linguagem natural ou executar tarefas como a sumarização ou a extração de conhecimentos", através dos chamados "agentes" e "transformadores" ("transformers"), ou recebendo um guia detalhado de instruções, o chamado "prompt".

 

Um conceito para a Inteligência Artificial Geral (IAG) está longe de ser atingido, quer pela impossibilidade de saber até onde a tecnologia pode chegar, quer pelas implicações existenciais e éticas que gera.

No entanto, um conceito muito limitado é o de que a IAG "é uma IA com capacidades que rivalizam com as de um ser humano. Embora nesta fase seja puramente teórica, um dia a IAG poderá reproduzir capacidades cognitivas semelhantes às humanas, incluindo o raciocínio, a resolução de problemas, a perceção, a aprendizagem e a compreensão de línguas".

 

Se assim acontecer, ficaremos perante todo um novo patamar de existência da humanidade, que tanto irá gerar profundas alterações políticas, sociais e económicas, como constitui em si o que os teóricos chamam "um risco existencial", isto é, que pode contribuir para a destruição da vida humana.

 

Refletindo sobre esta possibilidade, Benedict Evans, um dos grande analistas contemporâneos de tecnologia, refere que "se conseguíssemos realmente criar algo em software que fosse significativamente equivalente à inteligência humana, deveria ser óbvio que isso seria muito importante (…)", mas, aponta "no entanto, por cada perito que pensa que a IAG pode estar próxima, há outro que não pensa assim. Há alguns que pensam que os LLM podem escalar todo o caminho até à IAG, e outros que pensam, mais uma vez, que ainda precisamos de um número desconhecido de outras descobertas desconhecidas". 

 

Evans realça que "o mais importante é que todos concordam que, de facto, não sabem". 

 

Enquanto a discussão sobre a concretização da IAG se prolonga e se adensa um pouco por todo o mundo, o essencial neste momento é perceber o que as tipologias e produtos de IA existentes conseguem interferir e mudar na existência humana.

 

Os estudos multiplicam-se, as medições não param, os relatórios são partilhados.

 

O consenso mínimo dominante é o de que os processos e instrumentos de IA têm potencial, apesar de todas as suas falhas, alucinações e limitações, para serem utilizados nos inúmeros campos da vida humana, do uso como um amigo de um solitário, ao desempenho de uma tarefa laboral intelectual.

 

Ethan Mollick, outro grande analista da tecnologia contemporânea, defende que neste momento "(…) a IA está mais presente e mais naturalmente ligada aos sistemas e processos humanos. Se uma IA que parece raciocinar como um ser humano pode ver, interagir e planear como um ser humano, então pode ter influência no mundo humano".

 

Mollick acha que vale a pena classificar a IA já existente em níveis.

 

Num deles, "uma máquina vence um perito humano médio em todas as tarefas do seu trabalho, mas apenas em alguns trabalhos", num outro "as IA superam um perito humano médio numa tarefa claramente definida, importante e intelectualmente desafiante, e num derradeiro "os seres humanos que trabalham com a IA excedem frequentemente o melhor desempenho de qualquer um deles isoladamente".

 

O que Mollick defende, com esta proposta, formulada a partir da observação empírica que faz na academia e nas empresas, é que as tipologias já operacionais de IA podem tanto ser ativadas para ajudar o humano na sua vida e no seu trabalho, como aplicadas na substituição do humano.   

 

Os campos globais da informação e da educação são dois onde a presença da IA é cada vez mais extensa e profunda.

No campo vastíssimo da partilha de dados e de informação, privada e pública, o momento contemporâneo está ainda centrado na competição feroz entre entidades de legado, como são os departamentos dos governos e os media tradicionais, entre outros, e os chamados criadores digitais, que ocupam as diversas plataformas existentes e cujos conteúdos, na sua esmagadora maioria, estão libertos dos modos tradicionais de validação de factos e dados.

 

Ainda recentemente, a 4 de maio deste ano, o Economist concentrava-se no flagelo da "desinformação", revelando as novas metodologias para a sua execução, que passam pela criação de todas as tipologias de plataformas digitais e pela colocação nestas de informação cuidadosamente editada, ocultando assim a sua total falta de factualidade, com o objetivo de influenciar o contingente de visualizadores.

 

Sendo a desinformação um problema global grave, não o é menos tudo o mais do que uma ferramenta de IA permite fazer com os dados e a informação.

 

Num primeiro território, permite a captação, construção e curadoria dos dados e da informação em larga escala e de modo vertiginoso à entidade que os procura, edita e partilha.

 

Todos estes movimentos podem ser permanentes e com recurso a uma vastíssima base de dados e de informação.

 

Por outras palavras, permite uma total produção e economia contínua de construção de conhecimento e de perceção de realidade a cada um dos utilizadores que frequenta as plataformas digitais da entidade.

 

A frequência desta plataforma, a ser a eleita pelo utilizador, elimina-lhe, se assim o considerar, a necessidade de recorrer aos produtores de informação de referência, como os conhecemos atualmente, sejam eles o instituto de estatística nacional, ou o "media" respeitado.

 

É toda uma fragmentação, simultaneamente pessoal e global, geográfica, autoral e referencial da aquisição dos dados e da informação.

 

Escrito de modo mais ousado, se o visualizador achar credível a informação gerada pela plataforma comandada pela IA, ou se encontrar nesta tudo o que procura e deseja, o seu abandono das fontes referenciais clássicas será total. 

 

Este abandono, a dar-se, coloca em causa o alcance de Estados, governos, entidades públicas e privadas e de média, na ação de partilha de informação.  

 

Altera profundamente a origem da partilha de informação, essencial para a cidadania e para toda e qualquer decisão.

Empresas de tecnologia, como são o caso da Microsoft, Alphabet, Meta, Amazon, Apple e suas semelhantes, persistem na sua estratégia de possuir toda a tecnologia vital.

Uma mudança radical de paisagem de referência poderá igualmente acontecer na educação académica, que curiosamente é, neste momento, das mais abaladas, mas muito menos noticiada do que a presença da IA já está a alterar nos campos profissionais da medicina e da Lei.

 

O conjunto impressionante de teóricos que no último ano se tem dedicado ao possível impacto da IA na educação académica levantou já inúmeras hipóteses, sendo que a maior parte não cabe no espaço deste texto.

 

São duas as propostas mais radicais.

 

A primeira é de que com o tutor, humano ou tecnológico, competente qualquer criança e jovem poderá fazer todo o seu percurso académico, sem necessitar de frequentar escola, liceu e universidade.

 

A IA permite não só talhar o percurso de conhecimento exigido, atualmente a cargo das entidades de ensino, como aconselhar o aluno, melhorar o seu desempenho, e avaliar o seu trabalho.

 

A segunda relaciona-se com a infraestrutura necessária para aceder à plataforma de IA.

 

Se o computador e a banda larga existirem, qualquer criança ou jovem, em qualquer lugar do mundo, pode descobrir e fazer o seu caminho de aprendizagem.

 

A assim ser, a desigualdade no acesso ao conhecimento poderá ser tremendamente reduzida, em qualquer ponto do mundo, urbano ou rural.

 

Parece ser assim racional e límpido que a natural evolução permanente e acelerada da IA irá interferir e mudar quase todas as dimensões da vida humana.

 

No entanto, apesar de tomados por esta vertigem, de modo voluntário ou forçado, não devemos esquecer, de modo algum, o cruzamento já assinalado neste texto.

 

Ao mesmo tempo que cativam para si vastos segmentos de utilizadores, os processos e produtos de IA são agentes de algumas exclusões fundamentais.

 

Para começar a IA é a nova arma decisiva de poder nacional, com os EUA e a China a liderarem a competição, acompanhados por Rússia, França, Alemanha, Países Baixos, Índia, Reino Unido e Coreia do Sul.

 

O posicionamento na competição indica, como é tradição histórica, que todas as formas materiais de IA serão também utilizadas para afirmar o poder nacional dos Estados que dominam a sua criação e distribuição.

 

Mas há ainda um nível mais complexo de exclusão provocada pela IA.

As tecnológicas persistem na sua estratégia para atingirem o objetivo de serem hoje entidades com um poder tão gigantesco que escapam a uma definição da sua natureza essencial.

Um relatório muito recente da CommonWealth, uma entidade independente britânica de investigação, assinala que "as grandes empresas globais de tecnologia reforçaram o seu controlo sobre o desenvolvimento e uso das novas tecnologias de IA. Isto não é simplesmente exercido através da posse do capital – adquirindo startups de IA, por exemplo –, mas envolve também modos complexos alternativos de exercer controlo".

 

O que os investigadores revelam no seu relatório é que as empresas supremas de tecnologia, como são o caso da Microsoft, Alphabet, Meta, Amazon, Apple e suas semelhantes, persistem na sua estratégia de possuir toda a tecnologia vital para atingirem o objetivo de serem hoje entidades com um poder tão gigantesco que escapam a uma definição da sua natureza essencial.

 

O nível derradeiro de exclusão gerado pela IA é o da sua dependência dos lugares e conteúdos apenas existentes em território digital.

 

Ao assentarem as suas ferramentas na prospeção e extração de dados e de informação situada somente no formato digital, a IA reforça o apagamento e esquecimento de toda a criação e conhecimento que, por alguma razão, apenas foram fixados em superfície e objeto analógico.

 

As consequências desta exclusão para a construção da memória individual e coletiva, para a passagem do conhecimento, e para a manutenção das culturas, será sempre, seja qual for o processo e a dimensão que atinja, uma calamidade para tudo o que os humanos destinaram e destinam aos futuros.

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