À primeira, todos caem; à segunda só cai quem quer… Rafael está zangado, os dedos da mão direita crispados à volta do copo de vodca, os da esquerda perdidos algures entre o cabelo desalinhado, o pescoço tenso e as costas do sofá onde está sentado no lusco-fusco de uma sala mal iluminada. Pega no comando da televisão, que vai mostrando imagens sem som, e muda de canal, só para ver as horas. Já passa das três da manhã.
Sentindo-se subitamente cansado, deixa o olhar resvalar para o computador portátil, pousado sobre a mesa, apagado, quase se diria embaraçado, o ecrã praticamente escondido numa diagonal aguda. Rafael estremece. Dá mais uma valente golada no copo, percebe que foi exagerado, arregala os olhos, quase se engasga. Há dias em que um homem tem dificuldades em engolir tudo o que lhe aconteceu.
Dizem que a vida é o que acontece enquanto estamos ocupados a fazer outros planos. Dizem isso - e até o escrevem naqueles quadrinhos de pendurar na cozinha, o tipo de merdas em que não reparamos até ao dia em que procuramos uma prenda de última hora e, de repente, até parece uma boa ideia. Nunca é. Mas hoje não consegue pensar noutra coisa.
Hoje foi o dia em que reviu a Sofia. Só isso já seria mau, mas ter acontecido pela segunda vez em três dias ultrapassa o seu poder de encaixe.
A Sofia. Durante quatro anos, foi ela quem se sentou na outra ponta do sofá onde agora Rafael rumina sentimentos e memórias. Bom, no último dos quatro anos foi isso, nos anteriores passavam mais tempo no mesmo metro quadrado… a paixão é uma coisa linda e Rafael, por mais que lhe custe agora, não consegue apagar totalmente esse período iluminado da sua vida. Foi a primeira vez que partilhou casa com alguém e isso nunca é tarefa fácil quando já passámos dos 30 e criámos rotinas, facilitismos, verdades absolutas que são só nossas e não temos de debater com ninguém. Até ao dia.
Mas com a Sofia foi mágico! Com o seu jeito decidido ela tornou tudo fácil: oleou as resistências, acelerou as prioridades, refinou as preferências, adoçou as contrariedades. Até ao dia. Até ao dia em que "decidida" passou a soar a "teimosa", "insensível", "fascista". O último ano foi sempre a descer, até ao dia da separação. Ela pegou nas suas coisas e saiu porta fora. Mais uma vez, foi ela quem decidiu. Rafael não conseguiu dizer-lhe para se ir embora. Fechou-se cada vez mais num mutismo feroz que só aprofundava ainda mais os fossos que ambos iam cavando desencontro após desencontro, discussão após discussão, insulto após insulto.
Ela foi-se e o vazio tornou-se difícil de preencher. Para Rafael, a independência ("solidão", contrapõem os amigos, soletrando por entre copos, uivos de sintetizadores e fumo de tabaco, para reforçar a mensagem) tornou-se uma barreira intransponível. Nunca mais - e já passaram dois anos - se imaginou sequer a viver com alguém e as mulheres, poucas, a quem abriu a porta do apartamento nunca passaram do pequeno-almoço do dia seguinte.
Os sacanas dos amigos, provavelmente mortos de inveja do único gajo do grupo que não tem de explicar à mulher porque chegou mais tarde do emprego ou pedir por favor para ver a bola na Sport TV ao sábado à tarde, esses pulhas não descansaram enquanto não o convenceram a meter-se numa app de encontros.
Rafael é um tipo desconfiado. E se um dia criarem uma caderneta de cromos com os desvios de personalidade, lá estará a cara dele a ilustrar a figura do "ciumento"… A cáfila de javardos com quem consegue estar uma noite por mês não se cansa de lhe falar de outras peças falhadas que lhe tolhem o caminho da perfeição: vaidade, insegurança, imaturidade, excesso de mimo quando era mais novo. Num arroto de criatividade, um deles falou mesmo em "masculinidade tóxica", para depois se concluir que, por "falta de estudos para isso", do que estamos a falar é mesmo de ser um matarruano…
No perfil para a app de encontros, Rafael ignorou estes reparos com bafo a álcool e trocou tudo por qualidades ou, na versão mais generosa, dúvidas assumidas que abrem a porta para um clima de tolerância face ao outro. Vaidoso? Não: autoconfiante. Inseguro? Esqueçam: maleável. Imaturo? Nem pensar: personalidade aberta. Mimado? Nada disso: infância feliz. Matarruano? Era o que mais faltava: pessoa com algum apego a valores tradicionais. Ciumento? Digamos antes que procura relação séria e estável baseada na confiança e respeito mútuos.
Com todo este paleio engatilhado, era uma pena não poder utilizá-lo na conversa…, mas percebeu então que até podia. Acontece que a app oferecia uma opção extraordinária, refinando a sua já rotineira utilização de inteligência artificial com uma arma extra: a criação de "robôs virtuais", os "bots", que interagissem uns com os outros nas caixas de diálogos. Ou seja, antes de entrar em contacto com alguém, era possível antever o clima da conversa com a pessoa por trás do outro "chatbot". Isso e meter umas cenas ao barulho - pensou de imediato Rafael (aliás, "Pedro") - para perceber se caíam mal quando se desse o cara a cara.
E foi assim que o "bot" Pedro começou a falar com a "bot" Sílvia e ela lhe disse que não gostava de falar das relações passadas e preferia manter a aparência física fora da conversa, para dar mais espaço a uma verdadeira ligação de personalidades. "Calhou-me um estropício", pensou logo Rafael, mas Pedro lançou mais uns anzóis na caixa de diálogos e qualquer coisa lhe despertou a curiosidade. Marcaram encontro.
O fogo e o gelo, insondáveis alquimias da alma humana. Aquele olhar de estalactite, o tom de voz em sussurrar de lança-chamas, o supremo asco de um corpo que se afasta instintivamente. Tinham combinado que ambos levariam uma flor, para se reconhecerem no bar. Resultou. Ela estava sentada e ele aproximou-se, num estranho bailado de emoções: ansiedade e expectativa, insegurança e uma estranha sensação de déjà vu. Ela levantou-se. Era a Sofia. Puta que pariu a máquina e as suas equações, os algoritmos e as sinapses de silicone; a mulher que a inteligência artificial selecionara como parceira ideal era a memória mais dolorosa da sua vida.
"Devias ter vergonha na cara!", atirou ela, antes de lhe arrancar a flor das mãos, atirá-la ao chão, juntamente com a sua (ambos tinham levado rosas amarelas, como as que ele lhe dera na noite em que passaram a viver juntos, mas isso não podiam saber os "bots" quando a ideia surgiu na conversa…), e se afastar rapidamente, o salto alto e a saia apertada a tingirem o momento com um anacrónico toque sensual. Depois do primeiro momento de puro estupor, Rafael tentou ignorar os mirones e dirigiu-se com ar inerte para o balcão. Mas a primeira bebida da noite soube-lhe a despeito, a sangue pisado, a ódio.
Nessa noite, amarfanhado pela vergonha e pela humilhação, Rafael descarregou a sua frustração em cima do "Pedro". Matou-o. Foi-se o "bot" e a aplicação de encontros, mais os amanhãs que cantam da inteligência artificial. Tudo abaixo. Um surto que tornou tudo ainda mais confuso na manhã seguinte, quando abriu o computador e percebeu que a caixa de diálogo de "Pedro" e "Sílvia" estava aberta… "Bêbado de merda, nem para destruíres és competente", rangeu entre dentes, antes de, agora sim, apagar aquilo tudo.
Façamos "fast forward" na triste vida de Rafael e avancemos dois dias, até à manhã daquele por onde começamos esta viagem. Muitas horas antes de se ver no sofá a ouvir passar os minutos numa noite de raivas e angústias, Rafael acordou, fez-se à vida e fez o que na véspera tinha combinado com os amigos: depois do trabalho, foi jantar com eles e, depois, seguiram para beber um copo. Nem deu pelo insólito da situação quando todos se afastaram e uma mulher se materializou à sua frente. "Não estou à espera de grande coisa, mas queres pedir desculpa, é isso?" Sofia. Outra vez?!
O que estás aqui a fazer? "Parece que querias pedir desculpa, achei que seria imperdível ver-te descer do pedestal…" Pedir desculpa? Pedir desculpa?! Porquê? E quem é que te disse isso? "Bom, se não é para pedir desculpa, então vai-te cobrir de moscas e a conversa acaba aqui. Mas quem é que tu julgas que andas a gozar?" Eu?! Eu ando a gozar? Tu montas-me uma armadilha, apareces de repente e queres conversa… "Tu é que disseste aos teus amigos que estavas arrependido e querias falar!" Como?! "Sim, ou vais negar que mandaste mensagens para uma data deles a desabafar…" Não mandei mensagens nenhu… "Eh pá, poupa-me! E vê lá se tens cuidado com o que fumas!" Outra vez umas nádegas perfeitas afastando-se num suave e perfeito ondular.
E agora já passa das três da manhã e o copo está, outra vez, quase vazio. Havia mesmo mensagens para os amigos. Que não enviou. Ou será que… não, nada disso, não enviei, não enviei, não fui eu. Mas quem é que se ia dar ao trabalho de "hackear" o WhatsApp para me tramar? E para quê? Rafael sacode a cabeça, para afastar o sono que lhe cola as pálpebras. Como todos os inseguros, sente que a Terra vai parar de rodar quando não está a controlar tudo. E agora o seu mundo está totalmente descontrolado.
Levanta-se, encaminha-se para o bar de copo na mão, hesita a meio caminho, olha de súbito para o portátil que continua pousado na mesa, o ecrã quase completamente deitado sobre o teclado, desligado, mudo, morto. Inverte a marcha, pousa o copo, liga o computador. Sim, está tudo apagado, por mais estúpida que fosse a ideia de que… Não, não resta nada. Mais nada.
Arrasta-se a caminho do quarto, de caminho pousa o copo, desliga a televisão e a luz de canto. A sala fica às escuras enquanto ele se afasta. Tropeça, desaba sobre a cama. E adormece quase de imediato. Assim que começa a ressonar, o zumbido elétrico do computador deixa de se ouvir na sala. No ecrã, abre-se uma mensagem: "Já posso falar, Sílvia. Estás aí?" A resposta surge quase de imediato: "Sim, ela também já está a dormir. Isto hoje não correu bem, mas, olha, tive aqui outra ideia…"