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O ritmo da transição energética está a acelerar

A descarbonização é o caminho que a sociedade tem de perseguir para mitigar o impacto cada vez mais acentuado das alterações climáticas. Num mundo a diversas velocidades, mudar para uma nova matriz de consumo energético não gera os consensos necessários. Quais os investimentos essenciais? Existe vontade política? Conseguirão as empresas fazer a transição? Quais as tecnologias a implementar? Estas e outras questões procuram respostas numa época em plena revolução energética.

13 de Setembro de 2021 às 09:30
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Passar de uma economia baseada em combustíveis fósseis para uma matriz com base em energias renováveis é um caminho sem volta. E está a acelerar. Após o relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas mostrar que os impactos climáticos chegaram mais cedo e de forma intensa, e tendo já os olhos postos na Conferência do Clima da ONU (COP 26), a ter lugar em Glasgow no final deste ano, a pressão está cada vez mais forte para o mundo embarcar nesta transição irreversível.

A talk "Descarbonização: Atuar já compensa", organizada pelo Jornal de Negócios a 9 de setembro, naquele que é o segundo ciclo de talks sobre sustentabilidade da iniciativa do jornal, contou com a participação de várias personalidades para ajudar a clarificar o que está em causa e os diversos caminhos a seguir.

O painel contou com a participação de João Pedro Matos Fernandes, ministro do Ambiente; Filipe Duarte Santos, professor catedrático da Universidade de Ciências da Faculdade de Lisboa e presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS); Júlia Seixas, professora na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e presidente do Departamento de Ciências e Engenharia do Ambiente (DCEA); Ana Quelhas, diretora da Hydrogen Business Unit da EDP; e Tiago Ramos, diretor do Projeto de Hidrogénio na Caetano Bus, iniciativa que venceu a categoria de descarbonização na edição do ano passado do Prémio Nacional de Sustentabilidade Negócios 20|30. A moderação esteve a cargo de Diana Ramos, diretora do Jornal de Negócios.

"O ritmo de transição tem vindo a ser acelerado também na agenda social. Há cinco anos, o discurso estava apontado para 2050. Mais recentemente, a pressão está para 2030 e isto tem consequências diretas nas empresas e nas decisões que têm de tomar", começou por assinalar Júlia Seixas no início do debate.

Um mundo a várias velocidades
Alcançar a neutralidade carbónica é o objetivo comum de um mundo a várias velocidades. E isto traz dificuldades acrescidas, sobretudo quando existem economias fortemente dependentes da venda de carvão, gás natural e petróleo. Para Filipe Duarte Santos, "é necessário mudar de paradigma, mas é extremamente difícil, porque a nossa civilização é baseada no consumo intensivo de energia. Tudo está moldado para utilizar combustíveis fósseis e há países cujas economias dependem integralmente disto e, portanto, são resistentes à mudança. Se ninguém comprar petróleo, como é que esses países vão ter a sua economia? Devastada. Este aspeto é para mim o central".

Fazer a transição para energias renováveis exige investimentos consideráveis por parte de todos os setores, já que falamos de uma transição global de funcionamento de uma sociedade. Um desafio que Ana Quelhas diz ser muito grande, mas exequível. A diretora da unidade de hidrogénio da EDP ressalta que "se houver um enquadramento de políticas públicas adequadas, não só é fazível e se consegue cumprir com os objetivos de descarbonização, mas também pode ser benéfico do ponto de vista económico e do ponto de vista da sociedade. Se as políticas públicas forem bem desenhadas pode trazer também efeitos distributivos, que são progressivos, ao contrário de muitas políticas públicas do passado, que são repressivas".

Como representante de uma empresa, Tiago Ramos partilhou neste debate a experiência de transição da Caetano Bus: "O desafio já foi lançado internamente há uns anos. Começámos há 10 anos na parte da mobilidade elétrica com veículos elétricos a bateria. Nos últimos dois anos, passámos para outra área mais ligada ao hidrogénio, mas sem dúvida que o nosso principal objetivo é arranjar soluções sustentáveis. Neste momento, estamos focados em veículos para o interior das cidades, mas em breve teremos soluções que vão ao encontro não só de veículos urbanos, mas também de veículos interurbanos e veículos pesados e de longas distâncias."

Um objetivo, diferentes tecnologias
Os diferentes stakeholders desta transição vão ter de passar de uma matriz energética baseada em combustíveis fósseis para uma baseada essencialmente em renováveis e por outros vetores, como a eletricidade e o hidrogénio. Desenvolver tecnologias para veicular estas energias é e continua a ser um desafio, não só tecnicamente, mas também pela criação de escala para se tornarem competitivas.

A eletrificação da economia é uma tendência clara. "Portugal consome hoje 1/5 da energia em eletricidade. No nosso roteiro de neutralidade carbónica, existe a visão de que a eletricidade poderá representar 2/3 em 2050. Isto é uma diferença muito grande na forma de consumirmos energia na indústria, nas habitações ou na mobilidade", explica Ana Quelhas. Porém, a eletricidade não chega a todo o lado. "No caso de Portugal, esse terço que sobra serão renováveis consumidas diretamente enquanto renováveis e outros vetores renováveis em forma de gás, e é aí que entra o hidrogénio. De facto, o hidrogénio renovável poderá ter na Europa um peso de cerca de 15 a 20% daquilo que é um mix de consumo de energia final em 2050. Hoje é zero."

Em termos práticos, no caso da Caetano Bus, a adoção de novas tecnologias para a transição climática tem resultado numa aprendizagem e adaptação ao tipo de cliente que servem: "Com o Acordo de Paris, percebemos que uma área que tinha de ser transformada era a área dos transportes. Sendo nós o principal fabricante de autocarros em Portugal, tentámos ser pioneiros nesta mudança. Tentámos perceber quais eram as tecnologias mais emergentes para tornar os nossos veículos em zero emissões. Inicialmente começámos com os veículos a baterias, mas rapidamente percebemos que estes veículos tinham algumas limitações devido à quantidade de baterias que tínhamos de instalar nos veículos para terem um dia completo de operação sem abastecimento", explica Tiago Ramos. Por isso, "começámos a olhar para outra tecnologia, neste caso o hidrogénio, que nos permite ter uma solução muito mais flexível – ao nível de operação é semelhante ao gás natural e ao diesel –, que permite ao operador não ter paragens intermédias ao longo do tempo". O problema está, porém, nos custos, refere, havendo ainda aí trabalho a fazer para tornar os veículos mais acessíveis aos operadores, bem como para criar postos de abastecimento para veículos elétricos e a hidrogénio ao longo do país.

Os custos são, portanto, a grande preocupação dos atores da transição climática. Porém, para Júlia Seixas, este não será o maior problema, dado o manancial de apoios previstos. "O problema não é a falta de dinheiro. Temos imensos recursos associados, quer ao PRR [Plano de Resolução e Resiliência], quer ao PT 2030. Na verdade, as componentes contidas nesse programa cobrem praticamente todos os setores da economia portuguesa. Temos componentes dedicadas à eficiência energética dos edifícios, à descarbonização da indústria, à mobilidade sustentável, há também uma componente dedicada ao desenvolvimento do hidrogénio e de novas renováveis, etc.", esclarece a professora da FCT. E acrescenta: "O problema não está na disponibilidade de dinheiro, mas sim noutros sítios. Por exemplo, em quadros regulamentares que têm de ser criados para incentivar à adoção de novas tecnologias, o problema pode estar, por exemplo, na ausência de liderança para a ação climática nas próprias empresas e nos setores da economia – é muito importante trabalhar as lideranças para a ação climática –, e pode estar na capacidade de inovação das empresas".

Os incentivos pretendem, assim, ajudar a economia portuguesa a fazer a transição para uma sociedade descarbonizada. Até porque a própria economia está, também ela, ameaçada pelas alterações climáticas. "A ciência indica que se não fizermos nada, se continuarmos com o mesmo paradigma dos combustíveis fósseis, as consequências dos impactos adversos das alterações climáticas serão muito gravosos e terão um custo muito elevado. É certo que a transição energética tem um custo adicional, mas há uma vantagem diferida no tempo, pois os prejuízos serão cada vez maiores se não fizermos nada", conclui Filipe Duarte Santos.