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Produção de álcool-gel faz “esfregar mãos” de Alcanena a Guimarães

À semelhança das máscaras, também a produção de álcool-gel está a mexer com as estruturas e até com os planos de investimento das empresas portuguesas, da matéria-prima ao produto final. Licor Beirão respondeu à chamada para ajudar, mas não quer fazer disto negócio.

07 de Maio de 2020 às 11:30
Na fábrica da Licor Beirão, na Lousã, já foram produzidos os primeiros 20 mil litros de álcool-gel para doar.
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Da gama habitual de quase 400 produtos de higiene e limpeza para hospitais, cozinhas, automóveis, tratamento de roupa ou piscinas, a Marcande está por estes dias praticamente reduzida a dois: o álcool-gel e o desinfetante de superfícies. O resto da produção foi colocada em "stand-by" nesta fase de pandemia para conseguir responder às encomendas de hospitais, câmaras, lares de idosos, bombeiros, particulares e empresas, como os têxteis e os cabeleireiros que estão a retomar a atividade.

Em março e abril, a microempresa de Sande S. Clemente, no concelho de Guimarães, disparou a faturação devido à procura destes produtos que "se vão continuar a gastar durante algum tempo", perspetiva Ricardo Mendes, contando ao Negócios que a fábrica dos pais tem agora os dez funcionários a fazer cerca de dez mil litros de álcool-gel por semana. Uma capacidade que pode multiplicar por quatro até ao verão, dobrando também o número de trabalhadores, se for aprovado o projeto de investimento para automatizar esta linha fabril, que se vai candidatar ao novo mecanismo de financiamento dedicado à covid-19.

Marcande

Fundação: 1992
Localização: Guimarães
Trabalhadores: 10
Volume de negócios: 350 mil euros
Exportação: 10%, maioritariamente para França e Espanha.
Especialização: Fabrico de produtos de higiene e de limpeza.


Embora diga que "preferia ter menos vendas e isto estar melhor para toda a gente", o químico formado na Universidade do Porto reconhece que este é um autêntico "negócio da China". A Marcande privilegiou os hospitais em necessidade e os clientes habituais - "são quem nos mantém durante o ano" -, mas também conquistou novos dentro e fora do país, como vários laboratórios franceses. A principal dor de cabeça foi mesmo o acesso à matéria-prima, sobretudo em março, evitando a rutura com um reforço dos stocks.

A Marcande concentrou a produção no álcool-gel e no desinfetante de superfícies. A procura dos clientes disparou dentro e fora do país.
A Marcande concentrou a produção no álcool-gel e no desinfetante de superfícies. A procura dos clientes disparou dentro e fora do país.

"Estão a ser meses loucos de procura. Para dar resposta às necessidades incríveis que surgiram logo no início de março e não deixarmos nenhuma indústria parar de produzir, tivemos de fazer horas extras, uma divisão justa pelos clientes, em particular pelos habituais, e uma gestão cuidada e apertada do álcool, que também tem chegado a conta-gotas de Espanha e de França", corrobora Madalena Alves, comercial da Valente & Ribeiro.

Valente & Ribeiro

Fundação: 2001
Localização: Alcanena (sede) e Belas (filial)
Trabalhadores: 60
Volume de negócios: 25 milhões de euros
Exportação: Apenas situações pontuais.
Especialização: Distribuição de produtos químicos e produção de diluentes para a indústria.


Álcool em tempos de guerra

Esta distribuidora e entreposto fiscal para o álcool registou mesmo um aumento do volume de negócios global nos últimos dois meses, período em que este produto correspondeu a cerca de 80%, quando habitualmente "quase não tem expressão" nas vendas. A porta-voz da empresa sediada em Alcanena apenas se recorda do "pico que houve em 2009 e 2010 durante a gripe A, mas nada parecido com este". Talvez porque, entre outros fatores, nesta pandemia outras empresas adaptaram-se para produzir o álcool-gel, seja na perspetiva do negócio ou da responsabilidade social.

É neste segundo grupo que se encaixa a Licor Beirão, negócio que o avô de Daniel Redondo comprou quando ficou desempregado em plena Segunda Guerra Mundial, "também numa situação extrema, como a atual". Ainda antes de o novo coronavírus provocar uma redução de 50% das vendas no mercado nacional devido ao fecho dos bares, cafés e restaurantes - os portugueses tendem a consumir bebidas alcoólicas em companhia e fora de casa -, a histórica empresa da Lousã, apercebendo-se da dimensão da crise sanitária, começou por pesquisar o panorama internacional para "pensar o que poderia fazer para ajudar" em Portugal.

Licor Beirão

Fundação: 1940
Localização: Lousã
Trabalhadores: 90
Volume de negócios: 29 milhões de euros
Exportação: 20%. Melhores mercados são França, EUA e Suíça.
Especialização: Produção de bebidas. Grupo inclui duas distribuidoras.


"Percebemos que tínhamos capacidade para a produção de álcool-gel, que não é um processo complicado e que será uma necessidade para ficar durante um bom tempo. A produção é feita em grandes depósitos, mas tivemos de fazer enchimentos manuais porque as nossas linhas não estão preparadas para este tipo [de processo] e não queremos qualquer mistura com o Licor Beirão, mas conseguimos ultrapassar isso", relata o CEO. Numa fase inicial de avaliação foi envolvido o departamento de qualidade e ocupa agora uma equipa de 15 pessoas, sobretudo nas tarefas de enchimento.

Da espera ao fim à vista

Desde o início de abril que na fábrica do distrito de Coimbra estava tudo preparado para arrancar com esta produção. Ou quase. Faltava um ingrediente (cetrimida) que nesta altura é difícil de encontrar e que é necessário para o processo de desnaturação do álcool e para que este artigo não pague o elevado imposto especial que incide sobre as bebidas alcoólicas, que ascenderia a 13 euros por litro. Ora, resolvida esta questão por via legislativa através da isenção fiscal temporária (ver abaixo) e cumpridos os restantes registos e formalidades, a produção de álcool-gel arrancou na semana passada. Os primeiros 20 mil litros já foram entregues à Associação Portuguesa dos Bombeiros Voluntários e às administrações regionais de saúde de todo o país.

Daniel Redondo estima que nas instalações da Licor Beirão pode vir a produzir 10 a 15 mil litros semanais de álcool-gel, salvaguardando, porém, que não consegue "oferecer indefinidamente essa quantidade porque estamos a falar de um investimento muito avultado". Se vier a avançar com a venda será "praticamente a preço de custo, com uma perspetiva de apoio à sociedade", rejeitando a hipótese de transformá-lo numa nova linha da empresa.

"Não estamos a ver essa possibilidade. Num período transitório, com escassez no mercado, aí respondemos e estamos disponíveis para o fazer. Mas não é a nossa área de negócio. Seria um ganho pontual e não é isso que queremos. Somos produtores de bebidas e defendemos uma marca", conclui o empresário.


TOME NOTA

Desbloqueio nos impostos e na burocracia

Desde o início da pandemia, foram várias as medidas adotadas para estimular a produção nacional de materiais de proteção e levantar barreiras administrativas e legais às empresas.

Isenção fiscal
Em meados de abril foram adotadas medidas excecionais relativas às formalidades aplicáveis à produção, armazenagem e comercialização de álcool destinado a fins sanitários e terapêuticos com isenção de imposto. Isto é, foi simplificado o procedimento de desnaturação do álcool destinado a fins terapêuticos e sanitários, permitindo às empresas não pagarem o imposto especial do álcool, o que estava a impedir muitas de avançarem.

Biocidas sem carta de acesso
As autoridades estabeleceram procedimentos e requisitos excecionais e simplificados para a colocação no mercado nacional de produtos biocidas durante a pandemia. Agora, basta às empresas apresentarem uma notificação às entidades competentes (DGS ou DGAV), com a apresentação de uma autodeclaração que identifique o fornecedor da substância ativa, dispensando assim a obrigatoriedade de apresentação de uma carta de acesso. Não são aplicáveis taxas, podendo as empresas, quase de imediato após a notificação, colocar o produto no mercado.

Licenciamento industrial
Sempre que uma indústria licenciada para outras atividades pretenda fabricar álcool etílico ou produtos desinfetantes biocidas, caso não se enquadre na CAE licenciada e o estabelecimento industrial seja do tipo 3, só é necessário que a empresa comunique tal pretensão ao Estado (mera comunicação prévia através de formulário eletrónico). Os estabelecimentos do tipo 1 e 2 devem contactar o IAPMEI.