Carlos Mineiro Aires, bastonário da Ordem dos Engenheiros, explica nesta entrevista o estado em que se encontra a reabilitação urbana no país, recorda a importância do conforto térmico do edificado nacional e aponta o dedo à qualidade da nossa habitação, que é baixa. Fala da relevância dos Golden Visa e recorda que o investimento na reabilitação já começa também a chegar a outras capitais distritais, mesmo estando mais centrado em Lisboa e no Porto.
Como se encontra a reabilitação urbana em Portugal?
Na minha opinião, e tendo em conta as opiniões a que temos acesso, continua bem. Na verdade, depois da crise de 2009, não fora a aposta da iniciativa privada na reabilitação urbana, o panorama da indústria da construção civil teria sido bastante pior, face à ausência de obras públicas. Foi uma oportunidade para a sobrevivência das empresas, dos engenheiros e dos arquitetos, havendo apenas razão de queixa no que respeita aos honorários e outras formas de remuneração, uma vez que a fatia de leão cabe aos agentes de mediação que habitualmente ganham mais do que todos os outros intervenientes no seu conjunto.
É de assinalar a procura que existe para o segmento da recuperação do edificado, sobretudo no que poderemos classificar de segmento médio-alto, com enfoque nas utilizações ligadas ao turismo e à habitação de luxo.
Também houve uma aposta significativa de proprietários que decidiram investir na recuperação do seu património, tendo em vista a otimização da rentabilidade dos seus ativos. Tal resultou em exemplos que constituem referências do melhor que deve ser feito, como é visível nos diversos prémios imobiliários que todos os anos têm lugar.
Quais são os atuais desafios da reabilitação urbana no país?
É um facto que a qualidade das intervenções melhorou e atingiu um nível assinalável, que até obrigou à criação de nichos de especialização, uma vez que as intervenções de reabilitação obrigam a respeitar técnicas e práticas datadas que permitam preservar a imagem e condições de origem dos edifícios, o que os valoriza. Temos agora novos desafios, que recentemente ficaram mais expostos com a onda de baixas temperaturas que assolou o país, que nos obrigam a olhar com mais atenção para as questões do conforto térmico do edificado e a procurar respostas que garantam desígnios de eficiência energética para que possam ser atingidos objetivos de conforto na habitabilidade.
Outra questão que passa muitas vezes despercebida é a eficiência material, numa lógica de economia circular, pois a indústria da construção civil é uma atividade altamente consumptiva de recursos naturais cuja finitude é inquestionável. A par, começamos a dar os primeiros passos na adoção do conceito de "habitação inteligente" com recurso à internet das coisas, em que o controlo das facilidades domésticas passou a estar na palma da mão, tendência que irá ser irreversível.
Quanto à qualidade da habitação...
... mas nunca podemos deixar de ter em atenção que, na generalidade, a qualidade da habitação é muito baixa, o que leva a que Portugal esteja muito mal classificado nos índices de "pobreza energética", o que só nos pode envergonhar, pelo que é um problema que tem de ser enfrentado. Portugal situa-se no 4.º lugar entre os piores classificados, com um nível "muito alto" de pobreza energética. É lamentável que se morra de frio, ou de calor, por razões relacionadas basicamente com a incapacidade de pagar as faturas da energia elétrica e com a falta de condições na habitação.
Os dados reais de cerca de 550 mil certificados energéticos emitidos pela ADENE permitem concluir que 75% das habitações em Portugal são ineficientes do ponto de vista energético, ou seja, têm classificação C ou inferior, quando o mínimo legal para uma habitação nova é B-.
A reabilitação urbana continua centrada em Lisboa e no Porto?
Sim, sobretudo nestes dois principais centros urbanos do país, mas também na periferia e destinos conexos, o que tem lógica, pois a procura, quer no turismo, quer na habitação da gama média-alta, é aí que se concentra. Neste aspeto, foi importante o papel dos Golden Visa, pois canalizaram muito investimento para o imobiliário, sendo óbvio que quem investe tem de ter a liberdade de o fazer onde quiser, pelo que não faz sentido obrigar a que alguém o faça noutro local, pois o resultado é evidente: não o fará.
A forma como estes investidores passaram a ser olhados, associando-os a esquemas de lavagem de dinheiro ou de proveniência duvidosa, deve ser tratada nos locais indicados, ou seja, pelas polícias internacionais e não por políticas locais pretensiosamente justiceiras. Todavia, também há que reconhecer que muitos investimentos na reabilitação urbana começam a chegar a muitos outros pontos do país, nas capitais distritais, o que lhes permite conferir uma nova face depois do tratamento de imagem que o Programa POLIS permitiu. Hoje temos um país novo e muito mais bonito e moderno.
Como diria que é a qualidade da construção do edificado em Portugal? O que está bem; e o que está mal?
A qualidade da construção em Portugal, sobretudo nos últimos anos, é, na generalidade, boa.
Temos um parque habitacional envelhecido, a maior parte construído nos anos 50 e 60 do século passado, a que seguiu a democratização do acesso à habitação própria, que ainda hoje perdura, mas que tem fragilidades, pois foi feito numa época em que as exigências legais e dos próprios consumidores eram substancialmente diferentes.
No entanto, é bom assinalar, nem tudo o que hoje é feito tem uma qualidade de excelência, pois continuam a existir investidores pouco escrupulosos, cuja única mira é o lucro fácil, sendo que na reabilitação de apartamentos ou moradias de pequeno porte, por exemplo, vende-se muito "gato por lebre".
Já falei sobre as deficientes condições térmicas e de conforto do parque habitacional e não vou voltar a repetir essa grande debilidade.
Por outro lado, todos sabemos que o nosso país está localizado em zonas terrestres altamente expostas a eventos sísmicos e, apesar de termos legislação e conhecimento de excelência, continuamos a pensar que isso só acontece aos outros.
É obvio que vai acontecer e a comunidade técnica e científica não tem deixado de alertar para o que pode ser uma grande catástrofe, mas continuamos a acreditar em milagres.
A Ordem dos Engenheiros tem sido uma voz incómoda quando alerta para a necessidade de a legislação ser revista e complementada em aspetos tão simples como a necessidade de ser garantido o acesso à informação sobre os edifícios, na defesa dos direitos dos consumidores.
Por exemplo, após as operações de reabilitação urbana, entram no mercado edifícios, ou frações, de diferentes níveis de exigências técnicas pelo que, por uma questão de transparência de mercado e conhecimento do bem adquirido, deveria ser obrigatória a elaboração e apresentação de uma ficha técnica da habitação para edifícios reabilitados, independentemente da sua época de construção, protegendo os interesses económicos dos utilizadores.
Deve apostar-se mais na reabilitação urbana ou em edificado novo?
Deve apostar-se no bom senso e cabe aos decisores locais e aos investidores tomarem as opções mais corretas. Pessoalmente, sou adepto do reabilitar como regra, dentro de certos limites, até porque vai permitir a revitalização dos centros históricos, malgrado os dislates que escorraçaram os moradores e goraram as promessas que foram feitas aos jovens, em prol das utilizações turísticas mais rentáveis, o que poderia ter sido obviado com uma mistura equilibrada e justa.
No entanto, teremos de reconhecer que a construção nova traz outras facilidades e outro conforto que as zonas históricas habitualmente não permitem, tal como o parqueamento e, hoje, a possibilidade de ter postos de carregamento individuais para veículos elétricos, o que não é despiciendo num país em que as soluções de mobilidade estão longe de ser apelativas, conduzindo à necessidade de dispormos de transporte individual.