O mote para a mesa redonda "Os Resíduos Urbanos são o Novo Ouro Negro?" foi dado por Ana Trigo Morais, CEO da Sociedade Ponto Verde: "Quarenta por centro dos resíduos em Portugal vão para aterro. O sistema tem de ser desafiado". O painel foi moderado pela jornalista Alexandra Costa e reuniu especialistas de vários países da União Europeia (EU) para discutir aquele que é um dos mais complicados setores do sistema: da Alemanha, Michael Wiener, chairman Supervisory Board, da Green Dot Global; da Áustria, Martin Prieler, CEO da ARA Ag; e, de França, Jean Hornain, diretor-geral da Citeo.
Para perceber o caso de sucesso alemão, líder na reciclagem de resíduos urbanos, é necessário recuar aos anos 80 do século passado. "É preciso analisar como é que o sistema foi criado. Na Alemanha acreditamos na indústria. Pelo que tornámos a indústria responsável pelos custos de gestão de resíduos", lembra Michael Wiener. A partir daí, "fomos alcançando objetivos e aumentando as metas à medida que as alcançávamos", sem nunca descansar à sombra dos bons resultados, destacou Wiener, que é presidente do conselho de supervisão da Green Dot Glocal e ocupou vários cargos de gestão na área da economia circular (como, por exemplo, diretor-geral do grupo de gestão de resíduos Eberhard Mayr, em Estugarda, ou diretor-geral da Fischer Entsorgung GmbH).
Mas a indústria não foi, de todo, a única responsável pelos bons resultados alemães na reciclagem de resíduos urbanos. É no consumidor que tudo começa. É ele a mais importante peça da equação. E pode ser visto de duas formas: ou como o culpado, aquele que produz centenas de quilos de lixo por ano, ou como o que resolve o problema, separando o lixo e ajudando no esforço nacional da reciclagem. Na Alemanha, não houve dúvidas. "Quisemos tornar o consumidor parte da solução e não parte do problema. E, para isso, gastámos muito dinheiro em educação.Tudo começa pela separação do lixo em casa. Essa é a peça-chave da solução", sublinhou Wiener. Com um grande avanço relativamente ao resto do mundo, a Alemanha quer continuar na liderança do processo de reciclagem e, para tal, continua a contar com os seus principais aliados: indústria e consumidor. "No futuro o mercado estará cada vez mais maduro. Temos que continuar, acima de tudo, a convencer o consumidor de que ele é parte da solução. E temos metas muito ambiciosas: queremos 63% de reciclagem em 2035".
chairman Supervisory Board, da Green Dot Global; da Áustria
Do país vizinho, a Áustria, Martin Prieler apresentou argumentos similares. "O que não se recolhe não se pode separar", afirmou Prieler, que é membro do conselho executivo da ARA Ag, principal organização de responsabilidade do produtor de embalagens na Áustria. Foi também responsável pelas reservas estratégicas de petróleo da Áustria e diretor de mercado da Stena Yechnoworld, empresa líder de reciclagem de REEE - resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos.
Se o consumidor não fizer uma adequada separação do lixo em casa, não há muito que possa ser feito depois. E como convencer o consumidor? Além de perceber qual a melhor forma de comunicar com ele (quer para alertar para a necessidade de reciclar como para explicar qual a forma mais adequada de o fazer), a chave é apenas uma: "É preciso conveniência. A reciclagem tem de ser um processo simples para o consumidor".
Se a Alemanha e a Áustria se encontram no grupo dianteiro no que toca ao processo de reciclagem, bem mais atrás está a França. Isso mesmo confirma Jean Hornain que, depois de uma carreira ligada à imprensa, se mudou para o setor das embalagens. Na Citeo, tem-se dedicado a desenvolver o eco-design, a reutilização e a reciclagem, com o objetivo de adaptar a produção, distribuição e consumo à proteção do planeta, dos seus recursos, biodiversidade e clima. "Em França, a taxa de reciclagem de plástico é de apenas 25%. E a de alumínio também. Temos que subir muito as metas", admitiu, questionando: "Mas porque está a França tão atrás no que toca às metas e números de reciclagem? Desde logo porque começámos tarde. Fazíamos gestão de resíduos mas não apostámos, por exemplo, na reutilização".
Hoje, diz, o país está longe de ser um bom exemplo. "Ainda não convencemos os municípios de que é preciso incentivos à população, como as taxas de depósitos. Sem estes não vamos atingir as metas. Sem um sistema de depósitos não vai funcionar", avisa Hornain. Um dos grandes problemas passa pela falta de confiança dos consumidores franceses no processo de reciclagem. "As pessoas não confiam no sistema. Não acreditam que as embalagens vão realmente para a reciclagem, não acreditam que as empresas façam efetivamente esse trabalho. Acham que se vai tudo misturar no camião do lixo. Temos que trabalhar esse aspeto, é urgente trabalhar a confiança".
Nem tudo, porém, passa pela reciclagem, salienta o diretor-geral da Citeo. Acima de tudo, é preciso consumir e produzir menos. "Temos que reduzir o impacto das embalagens e o impacto carbónico. Temos que reduzir o impacto na biodiversidade. Como é que podemos fazer menos? Essa é a grande questão, temos mesmo que fazer essa mudança, reduzir os resíduos e aumentar a reutilização. Essa tem de ser a aposta".
Só somos bons a reciclar embalagens
Ana Trigo Morais, CEO da Sociedade Ponto Verde, também é crítica quando olha o trabalho desenvolvido em Portugal, chamando todos a assumir responsabilidades e a aceitar os desafios colocados para o futuro, exortando a que todos na cadeia de valor tentem fazer a sua parte o melhor possível, sem contemplações. Na reciclagem de embalagens Portugal tem bons números, mas falta fazer muito mais: "As embalagens são a única área da reciclagem que corre efetivamente bem em Portugal, com exceção do vidro. Mas estamos a tentar melhorar esses sistema, estamos a investir. Temos que sentar todos os intervenientes à mesma mesa e discutir, de forma muito séria, a questão: o que vamos fazer com os resíduos? Temos um grande problema: em Portugal, 40% dos resíduos vão para aterro. O sistema tem de mudar, tem de ser desafiado".
CEO da Sociedade Ponto Verde
A CEO da SPV salienta que é preciso transparência no setor. "Temos que discutir os custos do sistema, que provavelmente vão duplicar no próximo ano, e temos que ser claros e transparentes quanto a esses custos. É preciso dizer a verdade ao consumidor. São os consumidores que estão a pagar o sistema. É preciso explicar às pessoas quanto é que pagam pela gestão de resíduos em Portugal. E depois é preciso é fazer campanhas de sensibilização, apostar na educação e ser transparentes. O desafio é grande, mas estamos dispostos a colaborar com todos para mudar o sistema".
O que parece ser claro é que, sem decisões políticas firmes, dificilmente se alcançarão bons resultados. Na Alemanha, conta Michael Wiener, os resíduos que vão para aterro são já residuais. E isso só foi possível graças a uma visão política clara: "Na Alemanha temos uma visão clara sobre os resíduos e sobre os aterros. No final dos anos 80 do século passado houve uma decisão política e uma lei que definiu que, em maio de 2025, se iria acabar com os aterros. Foi uma decisão política. Uma vez tomada a decisão, foi dito à industria: têm 25 anos para se preparar para o fim dos aterros. O que é que isso significa? Criar infraestruturas para o tornar possível. Foi o que se fez. Houve segurança política, fizeram-se os investimentos necessários e tudo foi posto em marcha. Em maio de 2025 serão encerrados todos os aterros. É preciso orientação política, segurança, planeamento e criação de infraestruturas".
Também na Áustria, assegura Martin Prieler, acabar com os aterros foi uma decisão política. "Dissemos que os aterros iriam acabar em 2024. A segurança política foi crítica para o conseguir. Mas a legislação não chega. Não basta proibir. É preciso possibilitar. Ou seja, a acompanhar a legislação é preciso criar infraestruturas e soluções tecnológicas que permitam por a legislação em pratica. É preciso criar alternativas aos aterros". Uma visão partilhada também por Jean Hornain, que acrescenta: "É preciso decisões políticas firmes. Os políticos têm que tomar decisões não para as próximas eleições, mas para a próxima geração. Se tudo estiver sempre a mudar, ninguém vai investir".
Ana Trigo Morais é clara: em Portugal cerca de metade dos resíduos municipais são enviados para aterro. "Temos de olhar muito atentamente para estas questões a trabalhar em conjunto para tentar resolver o problema. Senão, é possível que cheguemos a 2035 ainda a enviar grandes quantidades de resíduos para aterro. Precisamos de um guião político para a próxima década. Temos que ter uma estratégia, uma visão. Precisamos de investir, e muito, em educação para a reciclagem, para a sustentabilidade. É preciso fazê-lo todos os anos. Precisamos de mais e melhor serviço e precisamos de mais conveniência".