A crise financeira que a todos ameaça obriga-nos a debater os diversos modelos de negócio do setor financeiro. A governação, a monitorização das funções de controlo (risco, auditoria e compliance) e da gestão executiva, a mitigação de potenciais conflitos de interesse, a "moral hazard", são temas a debater. Também a proteção das partes interessadas através de processos de resolução "o mais controlados possível", como parece ser o caso do Crédit Suisse e do Silicon Valley Bank, colocam o MREL (Minimum Requirement for own funds and Eligible Liabilities) sob os holofotes.
Importa colocar soluções maiores do que os seus protagonistas. Seria assim que gostaríamos de ajudar a promover um debate que consiga criar pontes e valor suportado nos princípios de Friedrich Wilhelm Raiffeisen (1818-1888) que nos unem.
Em Portugal, dos 294 concelhos com presença bancária, o Sistema Integrado do Crédito Agrícola Mútuo (SICAM) é líder em 231 ("A BANCA COOPERATIVA E O DESENVOLVIMENTO REGIONAL E LOCAL", de Luís Reto, Paulo Bento e Nuno Crespo, pág. 33 sobre os níveis de integração da banca europeia). E as cinco Caixas de Crédito Agrícola Mútuo (CCAM) Independentes lideram os concelhos onde atuam. Esta representatividade oferece uma reputação e uma legitimidade que devem ser recordadas e respeitadas.
É a confiança das partes interessadas que oferece legitimidade às organizações. Como as organizações de índole cooperativo de crédito valorizam a sociedade, os colaboradores, os acionistas, os clientes e todas as restantes partes interessadas?
Em Portugal, a Federação de Estruturas Financeiras Cooperativas (Agrimútuo) e a Servimútuo oferecem modelos de desenvolvimento suportados em experiências europeias em que o "bem da empresa" está ancorado na (I) capacidade de escolha e no (II) ganho de competitividade que assegure a continuidade num contexto de mitigação dos potenciais conflitos de interesse.
Nesse sentido, o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF) é um imperativo em que a independência não é um paliativo. É uma condição para a criação de valor. Nestas normas, p.e., é restringida a participação a membros executivos do conselho de administração na monitorização das funções de controlo (auditoria, compliance e risco). Com a finalidade de assegurar a independência, o seu Artigo 115.º – B, Comité de nomeações estabelece que deve ser "composto por membros do órgão de administração que não desempenhem funções executivas ou por membros do órgão de fiscalização".
São as falhas nos procedimentos e na cultura empresarial de gestão do risco que impulsionam as crises. Assim o demonstram a falência de instituições financeiras relevantes dos EUA e a falência sistémica do banco Crédit Suisse, o segundo maior banco da Suíça e uma das 20 maiores instituições bancárias da Europa, no decorrer do mês de março.
Em contraponto, durante a crise financeira de 2008, uma significativa parte das cooperativas de crédito tiveram um desempenho adequado sem necessidade de apoio do Estado e com liquidez para apoiar o mercado. Essa foi a regra por que estavam em linha com a sua natureza.
Quando a crise financeira emerge, o mérito cria os vencedores. Colocam-se então várias questões: quem garante os depósitos dos aforradores? E a estabilidade do sistema? E evita o "moral hazard" (risco moral) de, nos tempos de crise, serem os cidadãos, através dos seus impostos, chamados a salvar alguns que não souberam dimensionar o risco?
Em 2016, criou-se o Mecanismo Único de Resolução (MUR) integrando entre os seus instrumentos o denominado Minimum Requirement for own funds and Eligible Liabilities (MREL) no sentido de assegurar que um banco mantém, a todo o momento, instrumentos elegíveis suficientes para facilitar a execução da estratégia de resolução preferida. A criação e a manutenção da capacidade de MREL desempenham um papel fundamental na melhoria da resolubilidade de uma instituição de crédito.
Estes conceitos implicam riscos que só o conhecimento permite aferir e escolher.
As organizações procuram legitimidade de várias fontes para justificar a sua continuidade. Desta forma, a aprovação social e a competitividade são consideradas fundamentais para a sua viabilidade. Consequentemente, as organizações são suportadas em grupos de partes interessadas suficientemente dimensionados e poderosos para reivindicarem os recursos com sucesso. Naturalmente, e sob os holofotes da teoria da evolução, ao longo do tempo, as organizações têm de se adaptar às mudanças nos padrões sociais de valor e significado cultural para se manterem legítimas. E tudo envolvido no caldo das evoluções tecnológicas.
As cooperativas são um modelo de organização social assente em pessoas que, por necessidade de escala e de posicionamento, tendem a trabalhar em parceria de soma positiva. É a soma positiva que oferece confiança, mas é a autonomia que consigna a natureza. Cada um sabe o seu papel, o seu foco e o seu âmbito.
O cooperativismo não é capitalismo nem comunismo. É cooperativismo.
O cooperativismo é um modelo que vinga pelo seu mérito. No mundo, uma em cada sete pessoas está associada a uma cooperativa. A título de exemplo poder-se-ão identificar instituições como Intermarché, Mapfre, Agros e Sistema Unimed. Segundo a Aliança Cooperativa Internacional (ICA), em 2020, cerca de 92% da exploração mineral na Bolívia era feita por cooperativas. Algumas das maiores redes bancárias da Europa são cooperativas e detêm milhões de clientes e representam quotas elevadas nos seus mercados; 80% dos fertilizantes produzidos na Índia vêm de cooperativas; a maior rede de supermercados de Israel é uma cooperativa; 98% da produção de leite na Nova Zelândia e cerca de 95% no México são feitas por cooperativas.
Foi, também uma cooperativa que produziu o filme português "Alma Vida" que, em 2023, foi nomeado para um óscar de Hollywood. O mundo com cooperativas é mais rico, tem mais diversidade e dimensões e tende a valorizar o humanismo.
A necessidade de colaboração aguçou o engenho de novos modelos de trabalho e de investimento. Em Portugal, o cooperativismo de crédito conviveu com a monarquia e a república, atravessando regimes autoritários e democráticos.
No primado da concorrência, existem diversos modelos de cooperação. Na Europa e no mundo, cada país encerra dentro das suas fronteiras vários sistemas cooperativos concorrendo entre si "por um mundo melhor". Neste contexto, em Portugal, existem também dois modelos de associação cooperativa no sistema financeiro. Assim, hoje, 72 Caixas de Crédito Agrícola Mútuo (CCAM), a maioria centenárias, incorporam desde 1984 um organismo central – o SICAM – sob o lema de ser "um banco nacional com pronúncia local", verticalizado e centralizado ("A BANCA COOPERATIVA E O DESENVOLVIMENTO REGIONAL E LOCAL", de Luís Reto, Paulo Bento e Nuno Crespo, pág. 33 sobre os níveis de integração da banca europeia).
Por outro lado, temos cinco CCAM, centenárias, geridas por representantes das suas comunidades, que integram há duas décadas a Agrimútuo. E, de forma a operacionalizar serviços com vista à otimização de processos e procedimentos, considerando a eficácia da corporate governance, criou-se a Servimútuo, um agrupamento complementar de empresas (ACE). É um braço sem ombro, o que quer dizer sem perigo de estrangular o corpo cooperativo.
Num contexto de cooperação suportada em valores e numa autonomia responsável e responsabilizada, importa assegurar a concorrência e a mobilidade (princípio cooperativo e democrático da livre adesão). Só estes dois conceitos asseguram a sustentabilidade suportada na competitividade.
E o que é ser mais competitivo: é fazer melhor.
A procura de autonomia visa manter a proximidade com a comunidade que lhes dá a razão; e com o decisor, que lhe promove o desenvolvimento. Ao mesmo tempo mitiga qualquer risco sistémico que a escala (dimensão) obriga.
As Caixas de Crédito Agrícola Mútuo têm a sua essência (depósito versus crédito) e natureza nos membros da comunidade. Ao serem os "olhos e os ouvidos" da comunidade, garantem a sua continuidade.
Com o putativo ganho de dimensão, esta proximidade esbate-se. Criam-se regras e normas para substituir aquilo que o Homem reconhece como "confiança". Estas regras são suportadas em princípios que tentam salvaguardar os potenciais conflitos de interesse. E o agenciamento, ou, mesmo, não raras vezes, o nepotismo.
As organizações não podem ficar reféns de interesses particulares, sejam os acionistas, os trabalhadores ou os seus gestores. Nesse sentido, as Comissões de Apoio ao Conselho de Administração (também designado de Conselho de Supervisão) desempenham um papel bastante relevante perante as funções de controlo interno (conformidade, auditoria e risco) e na Comissão de Nomeação. Atuando como mais uma linha de defesa das instituições, O Conselho de Supervisão tem o dever e a obrigação de auxiliar as funções de controlo interno, no intuito de fiscalizar as ações de controlo interno e como estas se inserem na prossecução de otimizar e responder às exigências de um modelo de governação salutar, estável e eficiente. É a mera separação entre o monitor e o monitorizado.
Mas, infelizmente, muitos teimam em não respeitar.
Um risco moral ("moral hazard") é um conceito económico que descreve um cenário numa transação em que uma parte pode promover um comportamento de risco porque sabe que os termos do acordo exigirão que a outra parte assuma quaisquer consequências negativas. A decisão de assumir o risco resulta da assimetria de informação, que ocorre quando, numa transação, uma pessoa ou empresa tem mais informação do que outra.
A informação assimétrica incentiva uma parte a assumir riscos ainda maiores, sabendo que a outra parte os absorverá. Como exemplo amplamente citado, a crise financeira de 2008, em que os bancos que os governos consideravam "demasiado grandes para falir" entraram em colapso devido à assunção agressiva de riscos.
Saibamos valorizar as coisas na hora de as ter. O que é bom para o todo é bom para as partes. Instituições e organizações entram nesta análise devido ao apoio que proporcionam às relações que as empresas desenvolvem para resolver problemas de coordenação. As instituições são um conjunto de regras, formais ou informais, que os atores geralmente seguem, seja por razões normativas, cognitivas ou materiais, e as organizações são entidades duráveis com membros formalmente reconhecidos, cujas regras também contribuem para as instituições da economia política.
Estes conceitos também se relacionam com o problema do agente principal, que ocorre quando um representante da organização age de uma forma que não beneficia o melhor interesse da organização (Teoria da Agência). Não pode, nunca, um administrador em nome individual substituir um órgão sem estar habilitado para tal. Também aqui o tempo faz o seu papel de supervisor.
Numa cooperativa, o poder formal reside nos seus membros (associados). Por conseguinte, as unidades centrais de decisão necessitam de estratégias eficazes de legitimação discursiva para proteger a sua posição e os seus interesses no grupo.
Como forma de governação, a cooperativa é simultaneamente diversificada e resiliente. As cooperativas foram especialmente bem-sucedidas durante os períodos de recessão económica. Como já observámos, a resiliência do modelo cooperativo advém da sua necessidade de se ajustar a tudo e a todos. Esta resiliência e adaptabilidade têm sido atribuídas principalmente aos princípios cooperativos, que proporcionam uma ligação entre os ideais sociais e as operações económicas.
É esta elevada capacidade de adaptação que a motiva, e lhe oferece resistência. É desta forma que a insistência num organismo central, verticalizado, pode tender a descaracterizar as Caixas Agrícolas sem visível ganho de valor (ver Estudo do Centro de Estudos Aplicados da Católica Lisbon School of Business and Economics do professor Ricardo Reis, "Modelos institucionais e perspetivas futuras das Caixas Agrícolas integrantes da Agrimútuo").
Ao afastar-se o poder de decisão da autoridade da comunidade que cria e suporta a sua cooperativa de crédito, e a consolida quer como cliente, quer como garante de valor e de valores, perde-se a razão da sua criação: um banco local para o apoio aos locais.
Ao intentar-se criar um banco agregador, pode criar-se tão-só mais um banco. É assim que, sem problemas de capital, dezenas de CCAM acabam por assumir o risco de um banco sistémico, por força do modelo ajustado. E sem os instrumentos de capitalização disponibilizados pelo mercado de capitais ou de sócios capitalistas.
Face a isto, o problema do capital contingente para efeitos de (MREL e IMREL) pode transformar o que, no limite, em caso de crise financeira numa CCAM teria um simples impacto local gerenciável regionalmente, num risco sistémico por força de garantias cruzadas e recíprocas.
Ao se procurar ser o que não se é, cria-se "um ‘grupo de resolução’ para as instituições de crédito cooperativo permanentemente associadas a um organismo central, ao próprio organismo central e às respetivas filiais" (ver "Minimum Requirement for own funds and Eligible Liabilities (MREL) june 2022", do Single Resolution Board, disponível aqui).
Assim, instituições não significativas assumem riscos não controláveis (MREL e IMREL), devendo ponderar-se a mais adequada e equilibrada compatibilização entre os figurinos cooperativos independentes e o regime de resolução bancária, desejavelmente através de modelos originais de cooperação entre entidades bancárias cooperativas de menor dimensão (e não envolvendo risco sistémico), como aflorado no estudo "Possíveis Mecanismos de Cooperação entre as Caixas de Crédito Agrícola Mútuo Independentes (CCAM Independentes) – Perspetiva de direito Comparado e Figurinos a Contemplar no Ordenamento Nacional", da autoria do Professor Luís Silva Morais (trata-se de um estudo que, tomando entre outros aspetos como ponto de partida uma análise crítica de direito comparado, procede a uma análise geral, passível de concretização em diversos cenários alternativos, de mecanismos de cooperação institucional compreendendo – num momento inicial e sem prejuízo da possibilidade de alargamento a entidades congéneres ou de algum modo comparáveis – as cinco Caixas de Crédito Agrícola Mútuo atualmente não integradas no Sistema Integrado de Crédito Agrícola Mútuo).
Em 1974 foi constituído o Comité de Supervisão Bancária da Basileia com o objetivo de fortalecer a solidez e segurança dos sistemas financeiros, estabelecendo mecanismos únicos de supervisão bancária que vinculam os bancos centrais ao Banco Central Europeu (BCE) com a função de disciplinar e regulamentar o mercado.
Na sequência, foram fixados limites de capital adequados para acautelar o risco, sob o princípio de que os bancos de grande dimensão não poderiam falhar ("too big to fail"). Ora este princípio foi desmentido pela crise financeira de 2008 – não fosse a ajuda dos governos, o sistema bancário teria alavancado ainda mais a crise socioeconómica.
A verdade é que os princípios que regem a atuação de um banco nacional de grande dimensão não são os mesmos que regem os bancos de natureza cooperativa, cujos resultados em termos de liquidez e capital são intrínsecos à solidariedade, à tomada de risco, à especificidade e ao profundo conhecimento da realidade da economia e da comunidade em que se inserem e para a qual operam. E à multiplicidade dos seus pequenos negócios que a dimensão do seu pequeno mercado disponibiliza.
Este saber integrado na comunidade é resultado de experiências inclusivas. Ainda a 8 de março, em celebração do Dia Internacional da Mulher, a Agrimútuo doou ao Convento de Mafra um "Concertino para Mafra", da autoria do maestro brasileiro João Guilherme Ripper.
É esta sua natureza que a faz saber sobreviver. Qualquer organismo central que verticaliza a sua operação tende a perder valor a vários níveis, começando pela perda de identidade e de proximidade, passando pelo desconhecimento do território e das suas gentes e culminando em potenciais perdas de negócio.
Por isso acompanhamos os que consideram que o caminho está na "não mutualização do risco", socorrendo-se dos mecanismos legais de capitalização amplamente descritos no Código das Sociedades Comerciais e, atualmente, no Código Cooperativo. É isto que acontece na nossa vizinha Espanha com as Cajas Rurales/Banco Cooperativo Espanhol, mas também na Áustria, na Alemanha, Itália, etc.
Ora, um dos modelos espanhóis e aquele que apresenta maior eficiência, preconiza a constituição de uma rede entre os bancos locais (as Cajas Rurales/ Banco Cooperativo Espanhol) apenas para efeitos de eficiência, reportes e controlo solidário dos riscos. São já décadas de experiência que provam o seu mérito, mas estes exemplos também acontecem na restante Europa.
Nesse sentido, a Servimútuo procura reforçar o seu campo de atuação podendo tal passar por, entre outros aspetos, obter uma licença bancária para efeitos de serviços, excluindo a operação bancária stricto sensu. Este modelo não preconiza um "banco central" como entidade pro-reguladora, dado que para esse efeito já existe o Banco de Portugal, que na sua atuação não sofre de qualquer "capitis de minutio". Também o código cooperativo, na sua versão atual (aprovado na Lei n.º 119/2015 de 31 de agosto) e alterada pela Lei n.º 66/2017, de 9 de agosto, tem mecanismos para que a sua supervisão opere de forma plena em relação aos pequenos bancos cooperativos (MUS) e a lei permite os mecanismos normais de capitalização, o MUR (parecer dos professores Dr. José Ferreira Gomes e Francisco Mendes Correia, "FINANCIAMENTO DAS CAIXAS DE CRÉDITO AGRÍCOLA INDEPENDENTES PARA EFEITOS DE MREL E SISTEMAS DE PROTEÇÃO INSTITUCIONAL" de 17 outubro de 2022). E, em última análise, a própria comunidade tem tendência a sugerir os seus melhores e aferir a sua idoneidade (antecâmara do processo hoje conhecido como "fit and proper").
Ainda assim, importa também assegurar a autonomia dos membros das cooperativas de crédito, enquanto seus legítimos proprietários, através da capacidade de mobilidade das suas cooperativas de crédito, entre os modelos de associação cooperativa. Só assim se legitima o consenso fruto do debate democrático de todas as sensibilidades, tal como se assegura o mérito e a cidadania.
Uma cooperativa é uma estrutura de governação bastante extrema suportada pela legitimidade interna dos seus membros, das suas partes interessadas. Por conseguinte, é provável que as unidades cooperativas sejam mais ativas na garantia da legitimidade interna e da sua autonomia, como a melhor forma de preservar a sua continuidade.
Os processos de legitimação interna nas cooperativas são bastante visíveis devido à natureza democrática da organização, sobretudo nas organizações não hierarquizadas e não verticalizadas. No entanto, as nossas histórias autónomas, quase todas seculares, fornecem uma compreensão de como as unidades individuais procuram manter a sua relevância numa forma organizacional alternativa, relativamente bem-sucedida e promotora de uma legitimidade conquistada.
Manuela Nina Jorge, presidente do Conselho de Administração da Agrimútuo/presidente do Conselho de Administração da Caixa Agrícola de Mafra
Manuel José Guerreiro, vice-presidente do Conselho de Administração da Agrimútuo/presidente do Conselho de Administração da Caixa Agrícola de Torres Vedras