O financiamento da União Europeia (UE) é um tema tão antigo como a própria União e que ao longo dos anos tem gerado muito debate, diferentes propostas, poucos consensos e ainda menos avanços. No terreno, faltam medidas concretas para aumentar recursos financeiros e reforçar as competências de uma estrutura que se quer cada vez mais forte, eficiente e coesa.
O tema volta a ganhar relevância, numa altura em que o Reino Unido se prepara para sair da União e as questões da defesa e da segurança se assumem como determinantes para a região, e deu o mote a um debate esta terça-feira, 13 de Março, no auditório da Culturgest, no âmbito do ciclo de conferências "Os desafios da União Europeia".
O debate, conduzido por Eduardo Paz Ferreira, centrou-se nas questões da fiscalidade europeia e nos três domínios em que se equaciona a criação de novos impostos europeus, para reforçar as fontes de financiamento tradicionais do orçamento comunitário: transacções financeiras; plataformas digitais e ambiente.
"Nenhum tema é mais importante do que saber como financiar uma União Europeia que se pretende que cresça", admitiu o presidente do Instituto Europeu da Faculdade de Direito de Lisboa, acrescentando que "esta é uma questão que se arrasta desde o início, porque nunca houve um conjunto de receitas suficientemente alargado para financiar as despesas das comunidades".
Eduardo Paz Ferreira lembrou a forte resistência que historicamente os Estados-membros têm mostrado em aumentar as suas contribuições individuais para o orçamento europeu, sublinhando que a tendência se mantém, ainda que a UE "tenha hoje um conjunto de tarefas que aliviam fortemente o Estado", citando alguns exemplos de áreas nas quais esse papel é mais notório, como a agricultura, as pescas ou a investigação.
Ideias antigas que repetem fragilidades
Numa retrospectiva às propostas que ao longo dos anos se afirmaram como principais candidatas à reconfiguração do sistema de financiamento do orçamento europeu, António Carlos Santos, professor do Instituto de Direito Económico Financeiro e Fiscal, mostrou que as ideias se repetem e as fragilidades persistem.
Em 2004, no leque de propostas apresentadas pela comissária Schreyer, como contributo para a preparação de perspetivas financeiras para o período entre 2014-2020, já assumiam lugar de destaque ideias como a tributação de produtos energéticos, ou um imposto sobre transacções financeiras (ITF).
Avançando nosanos e olhando para as três possibilidades que voltam a estar em cima da mesa, a proposta para a criação de um ITF acabou por se materializar, mas a falta de consenso alargado permanece e avançará "mais numa lógica de cooperação reforçada e como receita da UE, uma vez que apenas 11 Estados-membros se mostraram favoráveis", sublinhou António Carlos Santos.
Outro aspecto que destacou foi o facto de, tal como a possível criação de um imposto verde ou de nova tributação sobre plataformas digitais, "nenhum dos impostos propostos implicar um reforço da noção de cidadania".
Falta de noção de cidadania é um entrave a novos impostos europeus?
A questão da cidadania marcou espaço em vários momentos do debate e Carlos Lobo, professor da Faculdade de Direito de Lisboa, também a vê como um dos obstáculos à criação – ou pelo menos à aceitação – de novos impostos de carácter europeu. "Não conseguimos criar uma base de cidadania europeia com base no imposto, mas conseguimos criar um imposto com base na cidadania", defendeu.
O responsável considerou que a noção de cidadania continua a ser difícil de desenvolver "porque o contribuinte europeu não tem percepção do que a UE faz por ele para cobrar impostos". A excepção vai para os países que mais beneficiam dos mecanismos de coesão, em que Portugal também se insere mas onde, ainda assim, essa consciência é difusa e tende a diminuir, tal como os fundos disponíveis para a promover, defende.
Carlos Lobo vê outra dificuldade na implementação no terreno dos impostos europeus em estudo neste momento, que é o facto de, em muitos casos, pretenderem taxar áreas que os Estados-membros já tributam.
Taxar transacções financeiras não vai matar investimento
No domínio das transacções financeiras, o imposto que a UE pretende implementar faz sentido e os receios que costumam rodear o tema são infundados, defendeu Miguel Correia.
Actual subdirector-geral do IVA, também liderou a equipa europeia criada para redesenhar a medida, original dos anos 30 do século passado. Na génese, prevê a "imposição de um custo adicional aos investidores quando completam uma transacção". O conceito já foi aplicado em alguns Estados-membros com resultados diversos e tem como principais entusiastas países como França ou a Alemanha.
A deslocalização em massa de activos financeiros; a repercussão nos consumidores sem qualquer criação de valor; e a diminuição drástica da liquidez do sector, por ser um obstáculo ao crescimento e ao investimento, são os receios mais apontados à medida.
O grupo liderado por Miguel Correia criou o motor nuclear do ITF, no qual cabem definições sobre a base tributável, territorialidade ou isenções, um desafio com várias dimensões, admitiu. A "grande dificuldade do imposto não é fiscal, mas regulatória. Mexer num relógio de alta precisão [como são os mercados financeiros] é um desafio." Falta agora encontrar respostas para outros aspectos cruciais na operacionalização do imposto, como as definições relativas à colecta.
Plataformas digitais: a quem serão aplicadas as novas taxas
A revisão que vai permitir outra alteração de peso na angariação e na distribuição de receitas geradas no espaço da UE está também adiantada e como sublinhou Clotilde Palma, professora coordenadora do ISCAL e consultora da Comissão Europeia para a reforma do IVA, até ao final do mês a Comissão Europeia deve apresentar uma proposta que permitirá harmonizar a tributação fiscal de negócios digitais e ditos tradicionais.
No cenário actual, destacou Clotilde Palma, os primeiros suportam uma taxa de imposto efectiva de 8,5%, duas vezes menos do que a suportada por empresas nas restantes actividades.
O tema tem estado na ordem do dia, porque a configuração dos negócios virtuais expõe a inadequação do quadro legal em vigor e obriga a UE a perder milhões de euros em receitas.
"A reforma do IVA já tinha resolvido várias questões", destaca a responsável. A proposta que vai alterar a forma de tributação dos negócios digitais e actualizar o conceito de estabelecimento estável, para que os impostos passem a ser cobrados no país onde as transacções são realizadas, é outro passo determinante.
No quadro actual, o conceito de estabelecimento estável, que define o local onde os impostos são cobrados, apela à localização física do agente económico. À boleia deste cenário é conhecida a preferência de gigantes como a Google, a Amazon ou o Facebook por países onde a carga fiscal é reduzida, para fixarem as suas operações.
As novas regras definem uma taxa única europeia, a pagar aos Estados-membros onde o serviço for prestado entre 1% e 5%, aplicável a empresas que tenham um rendimento global anual superior a 750 milhões de euros, ou um rendimento anual superior a 10 milhões de euros, resultante da prestação de serviços digitais no espaço europeu.
Portugal pode ter um papel de relevo na criação de novos impostos
Helena Borges, directora-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), assegurou o papel de Portugal no novo figurino de financiamento da EU. O trabalho da administração fiscal portuguesa é reconhecido pelos pares europeus em várias áreas, com destaque para o combate à fraude, e isso abre portas à representatividade do país em fóruns e grupos de trabalho.
"Temos de dar um contributo pelo menos ao pensamento e temos de trabalhar a capacidade de influenciar, ajudando a evitar erros de construção, que mais tarde podem ser graves", acrescentou a responsável.
Para Helena Borges, "preparar a organização por antecipação, quer no plano técnico, quer na preparação dos seus recursos, quer ainda estando atento aos desenvolvimentos internacionais", é o mais relevante para que o organismo possa cumprir a missão e "ajude a construir uma solução em que nos possamos sentir servidos".
A directora-geral da AT encara as mudanças que se avizinham para a fiscalidade europeia com expectativa. Reconhece que é fundamental adaptar o quadro legal à nova realidade do mundo dos negócios, sem esquecer as questões críticas da execução como quem actua, como se garante a segurança, entre outros.
Na perspectiva da responsável, "tem imperado um certo individualismo na UE" ao longo dos últimos anos no domínio da fiscalidade, que se materializa "numa limitação tremenda" e que deve ser culminada com esforços convergentes e coordenados.
"Se durante algum tempo foi possível a cada país resolver os seus próprios problemas, hoje é necessário elevar padrões e garantir que não há fragilidades para que os agentes económicos não tirem partido disso, num contexto em que a angariação de receitas dependa de terceiros".