Notícia
Quando dormir é mesmo o melhor remédio
“Todos os estímulos que vamos absorvendo durante o dia precisam de ser arrumados durante a noite, tal como numa biblioteca em que vamos desarrumando livros que (à noite) são arrumados pela bibliotecária”
Tem impacto no nosso desempenho e produtividade, na regulação das nossas emoções e na capacidade para tomarmos boas decisões. E compromete o raciocínio, o pensamento criativo, a concentração e, em particular, a memória. O défice de sono é uma condição dos "tempos modernos" e os distúrbios que dele emanam podem ter repercussões sérias na nossa saúde física, emocional e mental. Teresa Rebelo Pinto é psicóloga do sono e revela, em entrevista, a pesada factura que indivíduos, empresas e a própria economia têm de pagar decorrente da sua privação. E mostra os caminhos possíveis para a prevenção, diagnóstico e tratamento dos distúrbios associados a esta função vital para a nossa sobrevivência, à qual não é dada a devida atenção e que se pode transformar num verdadeiro pesadelo.
De acordo com as estatísticas, entre 45% a 50 da população mundial sofre de algum tipo de distúrbio de sono, o que já é considerado por muitos especialistas como uma epidemia de saúde pública, apesar de, e na maioria das vezes, não ser formalmente reconhecida como tal. A que se deve esta aparente "negligência" face a um problema que pode ter sérias repercussões no que respeita à nossa saúde física, mental e emocional?
De facto, existe uma boa fatia da população mundial, de todas as idades, com maus hábitos do sono ou patologias do sono, o que acontece muitas vezes porque as pessoas não têm um grande conhecimento sobre a sua importância ou funções. Ou seja, não existe uma percepção do impacto que a privação do sono tem, sobretudo a médio e longo prazo. No seu dia-a-dia, as pessoas sentem que controlam esse impacto, vão-no gerindo e geralmente só se preocupam quando estão em desespero, quando essas repercussões se alastram a outras áreas mais valorizadas, como por exemplo a produtividade, a atenção, a capacidade de regular emoções, entre outras. Em Portugal, o sono não é "muito bem visto" e, por isso, talvez esta negligência se deva muitas vezes ao desconhecimento que existe sobre a sua importância. De um modo geral, sim, é possível afirmar que vivemos uma epidemia de problemas relacionados com o sono.
A privação do sono tem vindo a ser um problema cada vez mais omnipresente e proeminente na denominada sociedade moderna 24/7. E com várias décadas de pesquisa, está cientificamente comprovado que o sono insuficiente causa condições físicas e mentais adversas. De um modo geral, quais são as suas possíveis principais consequências, tanto a nível físico, como mentais, e qual o seu grau de perigosidade se prolongadas no tempo?
Em primeiro lugar, é fundamental percebermos que existem muitos factores que podem levar a um sono insuficiente. As pessoas podem dormir pouco voluntariamente ou involuntariamente, ou seja, podem sofrer de alguma patologia do sono, de alguma doença médica ou de alguma situação de natureza mais psicológica ou emocional que interfere com a duração do seu sono, não conseguindo dormir o suficiente. A duração do sono adequada para os adultos é diferente daquela que é recomendada para as crianças e para os idosos. Por outro lado, também existem diferenças de pessoa para pessoa, sendo importante que cada uma saiba qual a duração do sono ideal para si.
Quando dormimos pouco ou temos um sono de má qualidade, aparecem alguns sinais de alerta. Por exemplo, sentimos dificuldade em regular a temperatura corporal, temos menos tolerância à dor e mais acidentes ou lapsos. Temos também mais tendência a ficar doentes, já que o sono tem um papel crucial para o sistema imunitário. A regulação do peso e do funcionamento metabólico fica também comprometido quando a duração do sono é insuficiente, existindo mais tendência a engordar ou desenvolver diabetes.
Todo o funcionamento cognitivo fica afectado quando dormimos pouco, por isso somos piores a raciocinar, a resolver problemas, a manter a concentração e a ter pensamento criativo. As dificuldades de aprendizagem e as queixas de memória são um dos principais sintomas de quem dorme pouco, o que é fácil de perceber se soubermos o que se passa no corpo durante a noite. No fundo, todos os estímulos que vamos absorvendo durante o dia precisam de ser arrumados durante a noite, tal como numa biblioteca em que vamos desarrumando livros que (à noite) são arrumados pela bibliotecária. É mais ou menos isso que o nosso cérebro faz durante as várias fases do sono, arruma os estímulos que absorveu durante o dia e decide quais é que são as informações que vão cair no esquecimento e quais é que vão ser armazenadas na memória a curto e longo prazo.
A relação do sono com a aprendizagem é muito importante para as crianças, mas também para os adultos. Considerando que vivemos numa sociedade que valoriza tanto a formação contínua, a verdade é que tudo o que ouvimos durante o dia não ficará devidamente apreendido se não dormirmos bem nessa noite. Para termos uma aprendizagem eficaz, temos de estar bem acordados durante o dia e dormir bem durante a noite.
As emoções também ficam muito desreguladas quando dormimos pouco. Sentimos mais irritabilidade, temos uma tendência maior para tomar decisões impulsivas e/ou para termos comportamentos de risco. Não nos podemos esquecer que o sono é uma função vital de sobrevivência, o que significa que serve essencialmente para nos adaptarmos ao dia-a-dia e termos uma boa vigília.
Em suma, o sono tem inúmeras funções relacionadas com diversas áreas, todas elas importantes. E quem dorme bem tem uma maior esperança média de vida.
Que dados existem em Portugal sobre os distúrbios do sono mais comuns na nossa população, que faixas etárias são mais afectadas e, a seu ver, que tipo de importância é dada a este fenómeno tanto por parte das pessoas que dele sofrem, como em termos de respostas clínicas?
Em Portugal, as pessoas valorizam muito pouco o sono e apesar de existir actualmente muito mais informação, esta nem sempre é cientificamente válida. As pessoas estão mais alerta para a importância do sono, mas podem não saber distinguir o que é ou não normal. Além disso, os próprios médicos nem sempre estão atentos a estas questões. O que acontece, na maior parte dos casos, é que quando as pessoas se queixam de problemas de sono, são prescritos medicamentos para facilitar a sua indução, não sendo investigada a fundo essa mesma queixa.
É importante que quem tem queixas de sono peça ajuda a um especialista desta área. Na Medicina, já temos muitos médicos de especialidades diferentes com competência para diagnosticar e tratar as patologias do sono. Na Psicologia ainda temos um longo caminho a percorrer, mas estamos a assistir a um aumento de diferentes profissionais de saúde mais especializados nestas questões. O sono é sempre uma questão multidisciplinar, por isso trabalhamos em equipas que incluem também a área da nutrição, exercício físico e cronobiologia, por exemplo. Apesar de muitas vezes as pessoas não saberem a quem recorrer, já existem bastantes clínicas do sono, com laboratórios onde se fazem exames objectivos e estudos do sono, mas ainda há muito a fazer. Aprendi cedo com a Professora Teresa Paiva, neurologista e pioneira na Medicina do sono em Portugal, que o sono é sempre multidisciplinar, não pode ser visto só como uma questão médica nem só como um comportamento. É uma área complexa.
No que respeita aos distúrbios, as insónias são a patologia mais prevalecente em termos das doenças do sono, mas aparecem também muitas patologias respiratórias, nomeadamente as apneias do sono, que não são exclusivas das pessoas com excesso de peso – por exemplo, as crianças também podem ter apneias do sono por outros motivos não necessariamente relacionados com essa componente da obesidade; existem parassónias, perturbações do movimento do sono, como por exemplo o bruxismo [ou o ranger dos dentes], que tem aumentado muito nesta fase de pandemia, na medida em que está associada a elevados níveis de stress. Ou seja, nas crianças e nos adultos podem existir as mesmas patologias do sono, mas com características diferentes e necessariamente com abordagens terapêuticas distintas.
O que é muito importante é que as pessoas saibam reconhecer há coisas que não é suposto acontecerem, como querer dormir e não conseguir. Por exemplo, não conseguir dormir mais do que três vezes por semana e ao longo de pelo menos três meses, se isso trouxer consequências negativas durante o dia, estamos perante uma insónia crónica. Ressonar nunca é normal, fazer coisas "esquisitas" durante o sono, como dar esticões ou ter impressão nas pernas antes de adormecer, ter muita sede de manhã, ter muitas dores de cabeça, são sinais para se pedir ajuda, pois estes "sintomas" não vão melhorar e, se não são tratados, podem agravar-se e ter consequências desastrosas.
Portugal é considerado como um dos países da OCDE com maior consumo de ansiolíticos e sedativos, que causam uma forte dependência e que podem dar origem a outro tipo de distúrbios. Qual a sua opinião sobre esta "maneira mais fácil" de se tentar mitigar o problema e que "sequelas" são mais comuns nas pessoas que durante anos (ou toda a vida) tomam este tipo de fármacos, não resolvendo as causas, antes camuflando-as?
Como já referi anteriormente, em Portugal é muito fácil medicar uma pessoa com queixas do sono. E se é verdade que existem muitas situações que implicam o uso de medicação na sua terapêutica, também existem outras em que tal não é adequado, havendo até muitos casos em que o uso de medicação pode estar na origem de um aumento dos sintomas. Por outro lado, muitas vezes as pessoas andaram a saltitar de fármaco em fármaco, não resolvendo o seu problema e criando uma certa descrença sobre a possibilidade de tratar o seu problema de sono. É muito comum eu receber pessoas na consulta que me trazem uma lista de 5, 10, 20 ou 30 medicamentos que já tomaram ao longo da sua vida para melhorar o sono, sem nunca terem tido um real sucesso para a sua queixa. E portanto, há que ter em mente que o sono não se trata só com medicação, apesar de esta ser por vezes necessária como no caso da narcolepsia, por exemplo.
Para continuar a ler o artigo clique aqui