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OJ Simpson, fraudes contabilísticas e Icahn: A história do colapso da Hertz
A Enterprise Holdings Inc. e a Avis Budget Group Inc. também estão a sofrer com o feito da pandemia, mas as más decisões da Hertz e a má sorte deixaram a empresa vulnerável na pior altura.
A versão curta da história da bancarrota da Hertz Global Holdings é algo deste género: o efeito global da pandemia afunda o negócio das viagens e deita ao chão uma icónica empresa com 102 anos de história, que recorre a tribunal para pedir proteção dos credores.
A versão longa é uma fábula sobre o que aconteceu a uma empresa que recorreu à contabilidade e à consolidação para manter felizes os seus acionistas. É um conto de histórias de um CEO para outro e equipas de gestão incapazes de perceber as alterações nos hábitos dos consumidores.
A Enterprise Holdings Inc. e a Avis Budget Group Inc. também estão a sofrer com o feito da pandemia, mas as más decisões da Hertz e a má sorte deixaram a empresa vulnerável na pior altura. Um antigo gestor de topo resumiu a situação difícil como um acidente com um comboio em baixa velocidade.
Na documentação do Capítulo 11, de proteção contra credores, a Hertz listou 25,8 mil milhões de dólares em ativos. A empresa que começou com uma dúzia de automóveis Ford T e teve a General Motors, a Ford e fundos de private equity como acionistas ao longo das últimas décadas, enfrenta agora um destino incerto e que vai ser decidido num tribunal de Delaware.
O.J., Enterprise
A história da Hertz não pode ser contada sem mencionar o final mais desastroso de sempre para uma ligação de uma celebridade a uma empresa.
A Hertz era detida pela Ford no verão de 1994 quando a polícia perseguiu O.J. Simpson num SUV Bronco branco devido à morte da sua ex-mulher, Nicole Brown Simpson, e o seu amigo Ron Goldman.
Na altura em que era uma estrela da equipa de futebol norte-americano Buffalo Bills, OJ Simpson fazia publicidade à Hertz ao som de gritos de crianças "Go, O.J., go!"
A publicidade na televisão era efetiva ao enfatizar o serviço rápido da empresa. Apesar da relação já não ser benéfica como nos 19 anos anteriores, a Hertz ficou ao lado de Simpson apesar da acusação, em janeiro de 1989, de este ter assaltado a mulher. Foi a própria mulher que convenceu pessoalmente o então chairman Frank Olson a manter o contrato com a estrela, noticiou o Washington Post.
@Hertz I’m available!!! #Hertz pic.twitter.com/QUGyKyvrwn
— O.J. Simpson (@TheRealOJ32) May 24, 2020
A Hertz continuou a ter bons anos depois daquele que foi denominado de julgamento do século e acabou com a absolvição de Simpson. Mas em novembro de 1994, a Auto Rental News colocava a Enterprise na primeira posição do ranking das empresas do setor de rent a car, em temos de frota e número de escritórios.
A era do Private Equity
Apesar de a Hertz estar a perder lugares na indústria do rent a car, a empresa ainda gerava lucros consideráveis, ao contrário da Ford que estava com problemas. A fabricante de automóveis vendeu a companhia em 2005 a duas firmas de private equity e a um fundo da Merrill Lynch por cerca de 15 mil milhões de dólares.
No ano seguinte, a Hertz escolheu o principal gestor da fabricante de componentes automóveis Tenneco para ser o CEO no regresso da companhia à bolsa de valores. Mark Frissora (na foto em baixo) cortou custos, eliminou milhares de postos de trabalho e foi bem compensado por isso. O pacote remuneratório de 2006, no valor de 19,2 milhões de dólares, foi superior ao que a Ford pagou ao seu CEO no ano passado.
Depois de lidar com a crise financeira global, a Hetz começou a perseguir a demorada e dispendiosa aquisição da Dollar Thrifty Automotive Group. Tentou comprar a empresa em 2010 por 1,2 mil milhões de dólares e acabou dois anos depois por pagar 2,6 mil milhões de dólares, após ter entrado numa guerra de ofertas com a rival Avis.
O negócios aumentou a quota de mercado da Hertz, que assim conseguiu continuar forte no segmento das viagens de negócios, com um reforço considerável na área do turismo. Mas a aquisição também fez aumentar a dívida da empresa, que já era substancial depois de ter sido comprada pelos private equity. No final de 2012 a dívida total era de 20,8 mil milhões de dólares.
A aquisição da Dollar Thrifty
Os problemas aumentaram devido à integração das duas companhias, de acordo com Maryann Keller, consultor da indústria automóvel que estava na administração da Dollar Thrifty quando a empresa foi comprada.
As empresas tinham sistemas informáticos que não comunicavam entre si. Frissora perdeu alguns gestores talentosos depois de ter alterado a sede das companhias de New Jersey e Oklahoma para a Flórida.
A Hertz pretendia juntar os slots das empresas nos aeroportos para poupar dinheiro, mas não tinha autorização para tal em muitos locais. A empresa também descobriu que a Dollar Thrifty deixou os pneus dos seus automóveis ficarem mais finos do que era permitido pela Hertz e muitos tiveram de ser substituidos, com um custo de 30 milhões de dólares. Nenhum dos problemas foi detetado durante a due diligence.
Era suporto a fusão gerar uma poupança de custos de 100 milhões de dólares no primeiro ano. Mas acabou por representar um custo extra de 70 milhões de dólares.
Problemas contabilísticos
Com os custos relacionados com a aquisição a pressionarem os resulados, Frissora encontrou outras formas de manter os lucros em alta.
Para travar a depreciação do valor dos veículos, a maior fonte de custos para as empresas de rent a car, Frissora tentou manter os automóveis em atividade durante mais tempo. Alguns até 50 mil milhas, o que se situa bem acima da norma da indústria de 30 mil milhas. Os carros mais antigos eram colocados nas frotas das marcas mais baratas: Dollar, Thrifty e Firefly.
Uma vez que a depreciação dos automóvel é mais elevada no primeiro ano, aumentar a sua vida útil diminui o valor que a empresa tem de mostrar na contabilidade. Mas nem todos os carros mais antigos saíram da frota da Hertz, pelo que a empresa começou a perder clientes descontentes.
De acordo com a Securities and Exchange Commission, a empresa cometeu fraude. O regulador do mercado norte-americano revelou que entre fevereiro de 2012 e março de 2014 a Hertz relatou resultados errados devido a erros contabilísticos. Vários investidores, incluindo Carl Icahn, pediram a demissão de Frissora em setembro de 2014 e no ano seguinte a empresa republicou resultados de anos anteriores.
A Hertz chegou a acordo com a SEC após pagar 16 milhões de euros e Frissora não foi acusado. Uma porta-voz do antigo CEO diz que o gestor conseguiu melhorias operacionais durante os oito anos que esteve à frente da companhia. A republicação de resultados em 2015 não teve qualquer efeito na atual situação financeira da companhia e Frissora não teve qualquer envolvimento em condutas contabilísticas impróprias, acrescentou a porta-voz.
Ainda assim, a Hertz acusou Frissora e três outros gestores no ano passado, visando receber de volta 70 milhões de dólares pagos em bónus devido ao seu envolvimento no escândalo contabilístico. O antigo CEO e os outros três gestores também avançaram contra a Hertz em tribunal, exigindo que fosse a empresa a pagar os custos da disputa legal.
A Hertz avançou com outro caso este mês, num tribunal de New Jersey, alegando que Frissora e o diretor geral Jeffrey Zimmerman apropriaram-se de 56 milhões de dólares em incentivos e devido ao envolvimento nos erros contabilisticos que inflacionaram os lucros da empresa em 200 milhões de dólares e levaram aos despedimento dos gestores.
A entrada de Icahn
Icahn entra na fotografia depois de um jantar em 2014 em Nova Iorque entre um analista do setor e Dan Ninivaggi, que era na altura CEO da Icahn Enterprises. Ninivaggi ouviu que a Hertz tinha uma boa marca e fundações sólidas, mas necessitava de disciplina e uma melhor gestão. Icahn ficou convencido e comprou ações. No final desse ano, tinha uma posição avaliada em mais de 1,3 mil milhões de dólares.
Um diretor da Hertz assumiu a liderança da empresa durante alguns meses, antes de ser tomada uma decisão fatal. Em vez de escolher o antigo CEO da Dollar Thrifty, Scott Thompson, para liderar a empresa, Icahn recorreu a John Tague, antigo COO da United Airlines.
Icahn "não colocou a melhor pessoa no lugar" e "teve uma forte rotação de gestores", diz Keller, que acredita que a Hertz não estaria na posição que está hoje se fosse Scott Thompson a liderar a companhia. Icahn não respondeu a pedidos de comentários.
Tague renovou a frota da Hertz mas fê-lo com ligeiros de passageiros numa altura em que os consumidores norte-americanos estavam a trocar as sedans por SUV. Os consumidores procuraram outras companhias à procura de SUV e as depreciações dispararam com as sedans a perderem valor. Tague também tentou aumentar os preços, assumindo que a concorrência iria seguir o movimento.
Mas a Enterprise e a Avis não o fizeram e conseguiram roubar ainda mais clientes à Hertz. Numa entrevista no sábado, Tague disse que o crescimento não era a sua prioridade. Começou a inserir SUV na frota, mas os problemas eram mais do que muitos: finalizar a investigação sobre fraude contabilística, integração da Dollar Thrifty, reconstruir a equipa de gestão que ficou fragilizada com a mudança para a Florida e fazer o "spin off" da unidade de aluguer de equipamentos.
"Depois da minha chegada, ficou claro que muitas coisas tinham de ser resolvidas de forma urgente", disse Tague numa entrevista telefónica. "Foi isso que fiz".
Futuro
Tague retirou-se no início de 2017 e foi substituído por Kathryn Marinello, que tinha estado na administração da General Motors e da Volvo. Os primeiros esforços iniciais para reduzir a frota e aumentar o peso dos SUV foram anulados pelo efeito do surgimento da Uber e da Lyft.
Marinello fez progressos. A Hertz conseguiu nove trimestres seguidos de crescimento dos resultados e as vendas subiram durante 10 trimestres consecutivos.
Mas quando a pandemia dizimou a indústria do rent a car, a Hertz ainda tinha pouca liquidez e uma montanha de dívida. Marinello demitiu-se a 16 de maio, menos de uma semana antes do pedido de proteção de credores ter entrado em tribunal.
"Devido ao impacto severo da covid-19 na nossa atividade e a incerteza de quando as viagens e a economia vão recuperar, temos de dar novos passos para enfrentar uma recuperação potencialmente prolongada", disse o novo CEO, Paul Stone, no comunicado a anunciar o pedido de proteção de credores.
"Os nossos clientes leais tornaram-nos numa das marcas mais icónicas em todo o mundo e estamos ansiosos por os continuar a servir agora e no futur0", acrescentou.