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Regra da unanimidade em matéria fiscal divide candidatos às europeias
Deve ou não haver impostos à escala europeia? E se sim, como convencer todos os Estados a alinhar pela mesma bitola se os tratados preveem que as matérias fiscais exigem decisões por unanimidade? O tema é polémico e divide candidatos a eurodeputados à esquerda e à direita.
Deve haver "uma estratégia para tributar o digital", leia-se, empresas como a Google, a Uber e muitas outras, que geram rendimentos em muitos países e neles não pagam impostos. E, por outro lado, "é muito importante que o valor seja tributado no país onde é gerado", ao contrário do que hoje em dia acontece ao nível da União Europeia, onde as empresas deslocalizam facilmente para países onde têm um tratamento fiscal mais favorável. Margarida Marques, candidata pelo PS às eleições europeias de maio, abriu as hostilidades no debate que esta quarta-feira decorreu em Lisboa sobre o tema da fiscalidade à escala europeia e lançou o repto: para os socialistas, "só se poderá avançar nestas matérias se se passar para a maioria qualificada em vez da unanimidade", isto é, se as decisões em matéria fiscal deixarem de ter de ser tomadas por acordo de todos os Estados-membros, como hoje em dia está previsto nos tratados.
O Governo português já demonstrou junto da Comissão Europeia a sua abertura no sentido de acabar com a regra da unanimidade, mas essa posição está longe de ser consensual entre os partidos, quer à esquerda, quer à direita. Isso mesmo ficou claro do debate desta quarta-feira, organizado pela Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC) com o objetivo, precisamente, de discutir as questões de natureza fiscal que estão em cima da mesa nas próximas eleições europeias.
No início deste ano, a Comissão Europeia lançou o debate sobre a reforma do processo de decisão em domínios da política fiscal da UE em relação aos quais é atualmente exigida a unanimidade dos Estados-Membros, uma unanimidade que, reconhece a Comissão, "muitas vezes, é impossível em iniciativas fiscais cruciais e pode conduzir a atrasos onerosos e a políticas subótimas".
Só assim, sublinha Margarida Marques, será possível contornar a vontade de países como a Holanda ou o Luxemburgo, que estão entre os que têm práticas fiscais mais agressivas em termos concorrenciais.
Quem não quer ouvir falar em perda de soberania nos Estados a este nível é o PCP. "Defendemos o princípio da unanimidade em matéria fiscal, reconhecendo que possa ser prejudicado a matéria de combate a fraude e evasão fiscal", afirmou o já eurodeputado e novamente candidato pelo PCP e pelos Verdes, Miguel Viegas.
Para o comunista, a questão é, aliás, uma falsa questão, que "é usada para não se fazer nada" até porque já se sabe à partida que países como a Holanda ou o Luxemburgo "nunca serão parte da solução. Para o PCP, a aposta deverá ser "um orçamento comunitário o mais transparente possível e que seja em percentagem do orçamento nacional bruto". Ou seja, "as regras devem ser claras: pode e deve haver receitas para compensar a saída do Reino Unido, mas temos de continuar a ter um orçamento fundamentalmente redestributivo, senão a UE não faz sentido.
PCP e CDS de acordo: Estados devem ser soberanos
E em matéria de unanimidade nas questões fiscais, PCP e CDS estão de acordo: "Portugal tomou a posição de, sem mandato da AR, dizer que está disponível para o fim da regra da unanimidade. Considero muito grave a decisão", declarou Nuno Melo, número 1 do CDS às Europeias e o único cabeça de lista a aceitar participar no debate promovido pela OCC.
A Comissão Europeia, afirma Nuno Melo, "propõe a votação por maioria qualificada em relação a regras sobre IVA, IEC e impostos sobre as empresas", sendo que isso se aplicará "a todas as empresas, não só à Uber, Google ou Facebook". Ora, "sou frontalmente contra os impostos europeus, são uma competência dos Estados e não devem ser transferidos para Bruxelas. Estou cansado de impostos", salientou o candidato.
Quem também defende a manutenção da regra da unanimidade é Paulo Morais, candidato pela coligação "Nós Cidadãos" e vice presidente da Associação Cívica Transparência e Integridade. "Sou a favor da regra da unanimidade que não permita criar regras destinadas a favorecer grandes empresas e corporações", dedende. Para o candidato, "a UE, para além de impor regras de défice orçamental, deveria impor também regras de orçamento, uma vez que temos uma opacidade orçamental absoluta, com uma percentagem elevada de despesas extraordinárias". E devia, sobretudo, "garantir o cumprimento da lei fiscal".
Estados têm de trabalhar "em coordenação"
"Os impostos europeus devem continuar a ser uma reserva de soberania nacional", defende, por seu turno, José Manuel Fernandes, candidato do PSD às Europeias.
Para o social-democrata, a aposta deve passar muito por um trabalho conjunto e de coordenação entre estados membros, que permita a obtenção de "receitas adicionais sem penalizar os contribuintes". De que forma? Desde logo por via do combate à fraude e evasão fiscal que "leva a perdas anuais de um bilião de euros, o equivalente a sete orçamentos anuais da UE", sublinhou. "Há aí um grande trabalho, conjunto, que exige coordenação. E aí defendemos cooperação entre os Estados", porque "se tivermos uma lista [negra de paraísos fiscais] e a Espanha outra, é fácil fazer uma transferência daqui para Espanha e daí para um paraíso fiscal", exemplificou.
Por outro lado, "há receitas que podem ser introduzidas no orçamento", como é o caso das multas às empresas, os lucros do BCE ou a parcela dos direitos aduaneiros que cabe aos Estados-membros e que pode ser reduzida. A somar a isso, acrescentou José Manuel Fernandes, "defendemos que quem não paga impostos os pague. A Google, a Uber e muitas outras, não têm presença física em Portugal, mas têm rendimentos. Sei que se for só Portugal, não teremos sucesso, mas se for à escala europeia será diferente" e "o que não queremos é que sejam os orçamentos nacionais a aumentar as suas contribuições porque aí vamos aos bolsos dos contribuintes", rematou.
Também o Bloco de Esquerda defende que a solução passa por garantir uma "melhor coordenação entre Estados Membros", algo que "com uma regra de unanimidade não vai acontecer". Porque, afinal, "estamos a pedir às raposas para guardarem as galinhas", afirmou José Gusmão, que participou no debate em representação do Bloco de Esquerda. "Num regime de livre circulação de capitais, a única forma de termos direito aos impostos sobre os rendimentos gerados no nosso país, é se existir coordenação entre os Estados Membros" e a soberania fiscal não passa de "um presente envenenado", sublinhou.