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O primeiro dia do resto da vida da 13ª legislatura
Quase um terço dos deputados são estreantes numa legislatura que arranca com uma clivagem tão profunda como nunca entre a esquerda e a direita e que ninguém arrisca dizer quanto tempo de vida terá. Para já, a sobrevivência está garantida até Abril de 2016.
Luís Monteiro apenas conhecia o Parlamento de fora, das muitas manifestações de estudantes em que participou. Percorreu agora os corredores pela primeira vez na quinta-feira, 22 de Outubro, quando foi tratar dos aspectos burocráticos de deputado recém-eleito, e na sexta sentou-se no hemiciclo, na bancada do Bloco de Esquerda, e votou também pela primeira vez como deputado, para escolher o presidente da Assembleia da República. Muitas "primeiras vezes" numa legislatura que, como ele próprio diz, é "muito particular, até por causa da aritmética".
De facto, nesta legislatura, os números parecem contar mais do que nunca. É a 13ª, um número aziago, e nenhum partido conseguiu os almejados 116 deputados capazes de garantir uma maioria absoluta e uma governação tranquila.
A geometria parlamentar está, pelo contrário, claramente marcada por uma maioria à esquerda, que já ficou bem patente esta sexta-feira, 23 de Outubro, com a eleição do novo presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, que recolheu 120 votos, praticamente todos os mandatos que somam o PS, o PCP e o Bloco de Esquerda (122 no total).
Luís Monteiro, já se sabe, votou em Ferro Rodrigues. É o mais jovem deputado da Assembleia da República, apenas com 22 anos, e acredita que o fez "em nome do interesse do país". E entusiasma-se com os temas que há-de seguir como deputado, "questões ligadas à educação, ensino superior, emigração", tudo assuntos que lhe são caros.
Tal como Luís Monteiro, um terço dos deputados estreia-se nesta legislatura (veja aqui um pequeno perfil de todos os 230 deputados e dos grupos parlamentares). Há nomes que já se evidenciaram por uma ou outra razão. Jorge Falcato, também do Bloco de Esquerda, é deficiente motor e desloca-se numa cadeira de rodas, o que já obrigou a algumas adaptações no Parlamento. A acompanhar a sua estreia estiveram vários deficientes hoje nas galerias. Sem problemas de acesso, garantiram os serviços. Ainda não está tudo operacional, nomeadamente as rampas que permitirão ao deputado subir à tribuna, mas estão a tratar disso, asseguram também aos jornalistas.
A novidade das "videobiografias"
Estreantes ou não, todos os deputados tiveram de passar pelo acolhimento, no salão nobre do Parlamento, para tratar dos aspectos burocráticos. Seguros, passaporte, licença de porte de arma... Preenchem uma série de papéis, recebem explicações sobre o portal do deputado e saem de lá com um saco de papel com a Constituição, o regimento da Assembleia da República, uma colectânea de legislação parlamentar e, ainda, um exemplar do Tratado de Lisboa. No saco vem também um folheto com informações sobre o próprio edifício, uma espécie de mapa para quem acabou de chegar.
Além disso, este ano há uma novidade: uma videobiografia. É uma espécie de mini-entrevista, gravada em vídeo, onde os deputados são convidados a revelar as suas áreas de interesse, o que esperam do mandato e quais os seus interesses pessoais.
A videobiografia tem, aparentemente muito pouca adesão. Não é obrigatória e, na verdade, no primeiro dia ninguém tem muito tempo para isso. Os deputados novos estão ainda a descobrir onde ficam as suas salas e os seus grupos parlamentares e os repetentes, que já conhecem os cantos à casa, desdobram-se em conversas uns com os outros e com jornalistas.
O tema é recorrente: o discurso de Cavaco Silva, de quinta-feira à noite, ainda fresco na memória de todos. E, mais, o destino desta legislatura, que ainda agora começou e que, na verdade, ninguém sabe quanto tempo sobreviverá.
"Um toque a reunir para toda a esquerda"
Eduardo Cabrita, deputado socialista já veterano nestas andanças, acredita que há todas as condições para a governabilidade duradoura de que tanto se fala. Assim Cavaco faça o que deve: "Esperemos que o presidente esteja à altura dos seus poderes", atira, lamentando que, num primeiro momento, Cavaco "entre uma solução com apoio maioritário no Parlamento", tenha optado "por indigitar um primeiro-ministro do seu partido".
Paulo Pisco, outro deputado socialista, afirma, por seu turno, que o discurso de Cavaco foi, afinal, um "toque a reunir para toda a esquerda", para além de revelar um espírito profundamente anti-democrata", ao colocar "de lado metade da Assembleia da República".
O PS vai votar em peso uma rejeição ao programa de Governo que Passos há-de levar em breve ao Parlamento? Eduardo Cabrita não tem dúvidas: o presidente "quis criar clivagens", mas "o PS é um partido de homens livres".
Esta sexta-feira o PS deu já sinais de união, juntamente com o PCP e o Bloco, a fazer eleger para a presidência da Assembleia da República o deputado Eduardo Ferro Rodrigues, quebrando o que a direita afirmou repetidamente ser uma tradição no Parlamento, ou seja, que fosse presidente o deputado indicado pelo partido que ganhou as eleições.
"Está em marcha uma operação de conquista de poder"
Desta vez não foi assim e Paulo Portas, ainda antes da votação, mas adivinhando já os resultados, chamou os jornalistas para dizer que, na sua opinião, "está em marcha uma operação de conquista de poder".
Não só porque foi o PS que elegeu o presidente do Parlamento, mas porque o PS quer ser Governo e porque, acrescentou, pela primeira vez se perfila um governo com o apoio de partidos que defendem a saída da zona euro e da União Europeia.
Os próximos tempos serão, portanto, de grande agitação política, sobretudo depois de os socialistas terem já anunciado, também uma rejeição ao programa de Governo de Passos. Cai o Governo, o país fica em gestão, e depois? Cavaco nomeia um governo à esquerda?
O Presidente passou a bola à Assembleia da República e António Costa já avisou: o povo quer uma mudança: "A Assembleia da República expressou de forma inequívoca a maioria da vontade dos portugueses para que esta 13ª legislatura seja marcada desde o início pela mudança", afirmou no Parlamento, depois da eleição de Ferro.
"Em democracia o mérito não se apura pelo resultado dos votos"
Dirigindo-se a Fernando Negrão, o perdedor, Costa salientou ainda que "em democracia o mérito não se apura pelo resultado dos votos", mas sim pela "qualidade, a convicção e dignidade com que cada um trata o combate político". "Prezamos muito a nossa liberdade, que não é manipulável por qualquer força que queira bloquear a mudança que os portugueses votaram", afirmou também, numa clara alusão ao discurso de Cavaco Silva.
Costa teve muitos aplausos de um lado e muitas manifestações de desagrado do outro. A primeira sessão da 13ª legislatura foi apenas uma antecâmera do que espera os deputados nos próximos tempos. Ferro Rodrigues, no seu discurso inicial, falou muitas vezes na necessidade de "construção de equilíbrios e compromissos". Citou mesmo Mário de Carvalho, recorrendo a um título de um livro do escritor, para dizer que os deputados "vão ter todos de trocar muitas ideias sobre muitos assuntos".
A corrida começa já em Novembro, no dia em que Passos submeter ao Parlamento o seu programa de Governo. E, pelo menos até 4 de Abril, a Assembleia da República permanecerá com a composição que agora tem, uma vez que, até essa data, não poderá ser dissolvida. O que acontecerá depois disso está, por enquanto, no segredo dos deuses.
Luaty Beirão também "esteve" no Parlamento
O activista angolano que se encontra em greve de fome em Luanda em protesto contra uma prisão preventiva que considera ilegal foi lembrado pelo grupo parlamentar do Bloco de Esquerda que a seguir à sessão inaugural do novo Parlamento, "vestiu" literalmente a camisola.
Os 19 deputados eleitos compareceram nos Passos Perdidos cada um com uma camisola branca onde estava impresso o rosto de um dos 18 detidos em Angola, incluindo, naturalmente, o de Luaty beirão, em greve de fome há mais de 30 dias. Na camisola que sobrou, um "hastag": #liberdadejá.
O tema tem sido largamente acompanhado pelo Bloco, que inclusivamente falou dele a Cavaco Silva, quando reuniu com o Presidente esta semana, no âmbito das reuniões para a indigitação do novo governo. "Não pode agora a Assembleia da República, símbolo da democracia, ficar calada", afirmou a porta-voz do Bloco, Catarina Martins. "Esconder o que está a acontecer é ser cúmplice da violência", salientou.