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Maria Barroso: O mundo inteiro está nas mãos do Deus mercado
Maria Barroso revelou ao Negócios, numa entrevista no final de 2010, que encarava a morte com "tranquilidade" e admitiu que a dor "custa mais suportar". Morreu como desejava: a trabalhar até ao fim. Releia a entrevista na íntegra publicada inicialmente em Dezembro de 2010.
Maria Barroso diz que se está a "assustar os portugueses" com o FMI . "Virá? Não Virá? Eu espero que não. Tenho fé em que os nossos políticos se entendam", desabafa a presidente da Fundação Pro Dignitate. Após ter vencido a doença, encara a morte com "tranquilidade" e admite que a dor "custa mais suportar". Estar "sentadinha em frente a uma televisão" é um programa que recusa. "Não tenho jeito para isso".
Maria Barroso confessa-se cansada. São quatro e meia de uma tarde fria de Dezembro e encontra-se, sentada à secretária do seu gabinete, na Fundação Pro Dignitate, paredes meias com a Basílica da Estrela, em Lisboa. Aos pés tem um aquecedor. Pede desculpa pelo atraso de 30 minutos, por ter estado na missa de Ernâni Lopes, o ministro das Finanças do seu marido em 1983, que recebeu o FMI e teve um papel decisivo na limpeza das contas públicas. Um católico convicto, tal como ela.
O cansaço, constata-se depois, era apenas um desabafo. Durante hora e meia de conversa, Maria de Jesus Simões Barroso Soares, 85 anos, exibe uma vitalidade invejável. Fala da morte, com serenidade, e salienta que a dor custa mais a suportar. Diz-se a maior admiradora do seu marido, Mário Soares, mas mostra orgulho na sua agenda própria. Ri-se com a comparação entre a política e o teatro e exibe orgulho quando se refere aos netos.
Diz que o mundo inteiro precisa de grandes líderes e precisa de encontrar um outro tipo de desenvolvimento. Fala da importância decisiva da solidariedade e diz ter fé em que Portugal consiga ultrapassar a crise. E reflecte ainda sobre uma outra crise, a de valores.
Antes de iniciarmos esta entrevista estava a dizer que tem hoje [3 de Dezembro] a apresentação de um livro na FNAC e uma conferência na Fundação do seu marido. Tem uma vida ocupada. Como é que gere o seu tempo?
Eu estou muito de acordo com aquilo que o povo diz – parar é morrer. Aceito alguns convites mas mesmo assim, acredite, que mais de metade não posso aceitar. Ainda ontem insistiram comigo para ir a Elvas falar sobre, não só como tratar, mas também como cuidar das pessoas. Sobretudo os cuidados paliativos. Porque não pode ser só dar remédios e funcionar como se os doentes fossem coisas e não pessoas. De maneira que é preciso dar carinho e criar uma rede de afectos à volta das pessoas que estão doentes.
Essas solicitações são estimulantes para si?
São. Eu gosto. São sinal de que ainda não morri e que ainda têm alguma consideração por mim. É bom não ir só às coisas do meu marido. Eu gosto muito do meu marido e estou casada com ele há 61 anos. Mas é bom ter-se um programa próprio e não ser só a senhora do senhor fulano tal.
A senhora não é só a mulher dele, do doutor Mário Soares.
Gosto muito de sê-lo, mas não sou só a mulher do Mário Soares. Quando o conheci já tinha a minha presença e o meu nome próprio na Faculdade de Letras.
O seu nome próprio é algo que preza?
Não tenho vaidade nenhuma. Considero que não sou nada de especial, mas é bom que a gente valha por si próprio e não só porque está casada com uma pessoa que tem muito valor, como é o caso do meu marido. Acho que é importante que as pessoas gostem de mim e me procurem para as ajudar. O que sucede muito. Faço muito trabalho de solidariedade com instituições, por exemplo na África de expressão portuguesa.
Ainda há pouco tempo esteve aqui em Portugal a irmã Lucília que tem uma instituição em Moçambique que trata de crianças, sobretudo órfãs, que visitei mais de uma vez. Fazem um trabalho sensacional. E a irmã Lucília, o ano passado, mandou-me um dossiê, pedindo que a ajudasse, porque queria fazer umas construções. Eu pedi aqui a um construtor de Lisboa, bastante rico, dei-lhe uma fotocópia do dossiê, e como ele tem lá uma filial, calculei que pudesse ajudar. Não fez nada. E depois um amigo, o doutor Nazim Ahmad, que é o representante do Aga Kahn em Portugal, proporcionou-me três encontros com o Aga Kahn e este deu-me uns milhares de euros para entregar a essa instituição. A irmã Lucília veio cá à Fundação Aga Kahn e eu fiz-lhe a entrega do cheque. Ela ficou tão contente! E comovida.
Numa outra vez liguei a um queridíssimo amigo meu, que se chama Artur Santos Silva, do BPI, por causa de uma irmã que trabalha no Lubango, em Angola, irmã do Cardeal Saraiva Martins, que dirige as beatificações do Vaticano. Ela estava com muita dificuldade em fazer o seu trabalho e veio cá, contar-me, que fazia os partos das africanas mas não tinha um carro para se deslocar, nem aparelhos para funcionar. Não disse nada à irmã, mas quando ela saiu telefonei ao doutor Artur Santos Silva. Ele arranjou um carro, todo aparelhado para os trabalhos dela. E ela veio cá há uns poucos meses e disse-me: deixe-me tratá-la por madrinha. Tão contente! Trouxe uma fotografia do carro! Esta gente anda cá neste mundo é para ajudar os outros. É isso que me dá uma grande satisfação. É ainda poder ser útil aos outros.
Ricardo Petrella, politólogo e economista italiano, afirma que substituímos o Deus bondoso e misericordioso pelo deus mercado. O que pergunto é se Portugal está nas mãos do deus mercado?
Eu penso que não é só Portugal. É o mundo inteiro que está nas mãos do deus mercado. Temos de arranjar um outro tipo de desenvolvimento. Nós, o mundo inteiro, para que não haja tanta discriminação. Para que não haja tanta desigualdade. Para que não haja um fosso tão grande entre ricos e pobres. É indispensável fazê-lo.
E como é que se faz?
É colocando também os grandes líderes a reflectirem sobre esses problemas e a encontrarem os caminhos. Eu ainda conheci grandes líderes europeus: o Olof Palm, o Willy Brandt, o Helmut Schmidt, que ainda está vivo.
Há falta de grandes líderes na Europa?
Há. E acho que era indispensável fazer uma reflexão. Temos um grande líder, agora, nos EUA. No Brasil, o Lula também foi um grande líder porque, segundo dizem, conseguiu acabar com uma parte importante da miséria. Ainda têm muito que fazer, agora não ele, mas a Dilma Rousseff, que lhe vai suceder. Mas é importante reflectirem sobre isso. E o Petrella tem razão. Substituíram um Deus que tem uma doutrina que é da solidariedade e do amor pelo próximo, e esta nova doutrina é de competição permanente e, muitas vezes, de uma agressividade muito grande entre as pessoas.
É um problema de falta de valores?
Também. Faltam alguns valores. Não podem ser só números.
Com a situação económica que se vive em Portugal acha que se corre o risco de uma implosão social?
Tenho muito fé de que possamos ultrapassar a crise e recuperar o equilíbrio sobre esse aspecto. Olhe, eu fui ao velório de Ernâni Lopes [n.d.r: a entrevista teve lugar nesse dia, a 3 de Dezembro], que foi ministro do meu marido, quando ele era primeiro-ministro, e o chamou numa situação dificílima. E, no entanto, ultrapassou-se essa crise. Mas os meios de comunicação têm de ajudar a ultrapassá-la.
Como?
Não dando ênfase permanente ao que é negativo, ao que é mau, ao que é escandaloso. Não quero que haja censura, de maneira nenhuma, mas acho que é preciso também dar importância ao que é positivo, para as pessoas sentirem o desejo de ajudar a vencer as dificuldades. Porque, senão, ficam desanimadas.
É assim que as pessoas estão: desanimadas, derrotadas.
As pessoas ficam desanimadas. Vejo o noticiário muitas vezes com o meu marido e só passa aquilo que é mau. É que há dificuldades neste e naquele sector, que vamos ficar atrás de todos os outros. É preciso não esconder o que passa, dizer toda a verdade e criticar o que está mal. Mas é preciso dar também notícia do que é positivo.
Os portugueses têm falta de auto-estima?
Este tipo de notícias é que dá falta de auto-estima. Porque depois as pessoas dizem: não vale a pena viver neste País. Eu vou a escolas e instituições modelares onde a televisão nunca apareceu, porque não interessa. Mas se a escola tiver um buraco, se houver um escândalo, então aparecem logo. Não pode ser. Eu não quero censura como lhe disse. Tivemos 48 anos de censura e bastou. Agora "est modus in rebus" (em tudo deve haver um meio termo), como diziam os latinos.
Não será a própria sociedade que se alimenta da desgraça alheia?
Por isso mesmo. Se as pessoas tiverem consciência das suas responsabilidades, mesmo que o público goste desse tipo de notícias, têm de dar uma alternativa. Por exemplo, telenovelas. Dizem que é do que o público gosta, mas não dão alternativas, para que se possa escolher entre uma coisa e outra. É preciso dar essa alternativa, para as pessoas começarem a ver coisas de qualidade e chegarem à conclusão de que afinal são boas. Eu não vejo telenovelas. Mas há romances portugueses extraordinários que dariam excelentes telenovelas, e depois vão buscar coisas sem interesse. Telenovelas, vi como toda a gente, a "Gabriela Cravo e Canela" do meu grande amigo Jorge Amado.
O País parou, nessa altura.
Exactamente. O meu marido – um dia estávamos a jantar com ele no Tivoli, salvo erro – e disse-lhe: veja lá que a Maria de Jesus não gosta de ver telenovelas. E eu respondi: eu gosto se forem telenovelas como a sua, a "Gabriela, Cravo e Canela", muito bonitas e com textos muito interessantes. Agora, se forem textos que não têm nenhuma espécie de qualidade, não gosto de ver. Aborrece-me.
Voltando à questão das lideranças, Jacques Delors, que foi o pai da ideia da construção da Casa Comum Europeia…
… E que disse uma coisa muito importante: a palavra de hoje é solidariedade. Nunca mais me esqueço disso.
E essa casa começou a ser construída pelo pilar económico, ou seja, pelo euro. Agora, com a crise, parece que cada país fala por si no seio da União Europeia.
Tem toda a razão. Mas é preciso que existam líderes que contrariem isso. É importantíssimo que isso aconteça. E que percebam a importância dessa ideia do Delors.
Tem faltado solidariedade entre os Estados-membros da União Europeia?
Pois tem. Mas é preciso que ela exista. Então nos momentos difíceis é preciso que as pessoas dêem as mãos e procurem aquilo que as pode unir para vencerem as dificuldades. Porque, caso se guerreiem e agridam, não vão a parte nenhuma. Pelo contrário. Acrescem as dificuldades.
Nesta crise, uma das questões que se tem debatido muito tem a ver com o papel do Estado. Mais ou menos Estado Social. Algumas das medidas tomadas pelo actual Governo de combate à crise têm a ver também com o corte de apoios de natureza social.
Estão a fazer um esforço muito grande para vencer a crise. Estamos numa situação muito difícil, mas não é só Portugal que se encontra assim.
Mas como é que se sente em relação ao fim de alguns apoios sociais?
Tenho pena, porque acho que é fundamental que haja apoios sociais. Dadas as desigualdades, eles são necessários.
A sociedade civil tem dado resposta. Por exemplo, as doações para o Banco Alimentar aumentaram.
Isso é uma coisa formidável e vem ao encontro daquilo que eu digo. É preciso saber falar às pessoas, ao seu coração e à sua inteligência, para que elas percebam a situação.
E também é preciso falar verdade às pessoas.
Com certeza. É preciso explicar porque é que estamos nesta situação e porque é que se têm de tomar determinadas medidas. Isso é indispensável.
E essa mensagem tem passado? Tem-se conseguido explicar isso aos portugueses?
Tem-se explicado uma parte, mas é preciso explicar cada vez mais claramente aquilo que se passa e porque é que se tomam determinadas medidas. Para que as pessoas compreendam. As pessoas tomam medidas difíceis dadas as circunstâncias em que nos encontramos, do ponto de vista económico, mas se depois não se explica claramente, é fácil jogarem com isto, intimidarem as pessoas e especularem, para poderem colocar mal o Governo. Depois é muito fácil levar as pessoas a indignarem-se, a revoltarem-se, a não estarem satisfeitas.
O que é que respondia se eu comparasse a política ao teatro?
Mas como?
Como um palco.
(risos). A política.
Os políticos são actores?
Vou dizer-lhe uma coisa. Houve um dia uma pessoa que se voltou para o Ronald Reagan e lhe disse: "Não admira que você tenha essas atitudes, porque foi actor". E ele respondeu: "e qual é o Presidente da República que não é actor?". Porque todos os políticos têm de representar um pouco, na medida em que querem convencer as pessoas e não podem só mostrar as suas indignações, aborrecimentos e mágoas. Porque têm de animar as pessoas para quem trabalham.
Então o que temos, neste momento, é que os actores que estão a pisar o palco político são de menor qualidade.
Não senhor. Não estou de acordo com isso. Acho que há actores óptimos, que são de belíssima qualidade e estão a fazer o melhor que podem.
É europeísta por convicção?
Sou europeísta, porque acho importante que construamos um bloco forte para ter uma voz no mundo e não uma parte negligenciável. Temos os Estados Unidos de um lado, o Oriente do outro e queremos que a Europa tenha uma voz igualmente forte.
E a forma da Europa ter uma voz forte é estar integrada?
Estarmos integrados e não perdermos esta moeda comum. Não a desperdiçarmos. E fazermos constantes encontros no sentido de definir as políticas que devemos seguir.
Referiu Ernâni Lopes, que o seu marido convidou para ministro das Finanças e que preparou a vinda do FMI para Portugal. Agora fala-se de novo numa intervenção do FMI.
Não sei se é verdade, se não. Mas estão a assustar os portugueses com isso. Virá? Não virá? Eu espero que não venha. Vamos lá ver. Tenho fé em que os nossos políticos se entendam e encontrem os caminhos para não se chegar a uma situação de grandes dificuldades e grandes carências, em que seja necessário recorrer às instituições lá de fora. Mas, se for preciso paciência, o que é que havemos de fazer!
Utilizou a palavra fé. Já lhe perguntaram muitas vezes quando é que recuperou a fé e já respondeu, muitas vezes também, que foi por causa do acidente do seu filho João, na Jamba. O que gostava de saber é se faz distinção entre religião e fé? Entre o Vaticano e a prática das missionárias de que falou?
Não. O Vaticano é a sede do Cristianismo, onde se definem as grandes linhas da doutrina. Mas não é preciso estar ligado ao Vaticano para se ter fé. Eles discutem a doutrina e dizem de sua justiça como cabeças de uma religião.
O Papa deu agora uma indicação relevante, ao admitir o uso do preservativo.
Foi muito importante. Porque ele, quando era Cardeal, tinha uma imagem muito extremista e muito intransigente. E agora tem conseguido amenizar essa imagem e isso foi uma coisa muito importante que ele disse. E já representa um avanço muito grande.
Tem fé e vive com um agnóstico.
Sim, mas dou-me bem com ele. (risos) A fé dá-me uma serenidade interior muito grande. É uma força que nos leva à adesão a determinados princípios e valores.
É uma questão espiritual, sobretudo.
É evidente. Nós não vivemos só de valores materiais. Mesmo quando educamos os jovens e os formamos, não o podemos fazer só orientando-os para valores materiais, mas também dando-lhes valores culturais, morais e espirituais, que são muito importantes.
Existe um défice de educação no País? Uma espécie de subversão de valores como os do trabalho e da honestidade?
E isso não tem a ver só com o Estado e as instituições. Tem a ver muito com os próprios pais das crianças. Os pais têm que criar um ambiente onde as crianças possam fazer a primeira aprendizagem dos grandes valores. Costumo dizer que a primeira escola que frequentei foi a casa dos meus pais. E é verdade. Éramos sete filhos, pai, mãe e avó e foi lá que descobri os grandes valores – o respeito pelos mais velhos, o amor ao próximo e a solidariedade, por exemplo. Tive um pai que esteve muitas vezes preso, não por roubar, mas porque era um político contra o regime e que esteve até deportado nos Açores, e nós percebíamos a situação em que estávamos e queríamos ajudar a nossa mãe a vencer aquelas dificuldades que lhe eram provocadas pela ausência do meu pai. Tive um irmão que foi professor na Faculdade de Ciências, pai do meu sobrinho Alfredo Barroso, e esse meu irmão foi para Itália melhorar os seus conhecimentos, casou com uma italiana e foi lá que nasceu o Alfredo. E lá teve muito contacto com políticos. Quando voltou, passado pouco tempo, demitiram-no da Faculdade de Ciências. Mas sabe o que é que ele fazia? Quando recebia o seu ordenado da Faculdade entregava-o, por inteiro, aos meus pais. E eu fiz exactamente a mesma coisa. Fiz exame da aptidão à Faculdade de Letras e entrei para o Teatro Nacional e ao mesmo tempo para a Faculdade. E todo o meu ordenado, como actriz, entregava-o aos meus pais. Era um imperativo da minha consciência, um resultado daqueles valores que tinha descoberto em casa.
Neste momento existe uma desestruturação das famílias.
Há muitas famílias muito afectadas e que precisam de dar maior atenção os filhos e à sua educação. Têm de dispor de tempo para poderem conversar com os filhos, para os poderem ajudar a formarem-se como deve ser. Há uma carta de um jovem, publicada há uns anos no "New York Times", que dizia mais ou menos isto: "Caro professor, não acredito na educação. Estive num campo de concentração onde vi professores muito bem preparados a ensinarem como se matava melhor, com mais requinte. Onde vi engenheiros, bem preparados, a ensinarem como se matar em mais quantidade. Por isso não acredito na educação". E dizia ele – "as ciências, a matemática, a literatura, todos esses conhecimentos não valem nada, se não forem acompanhados dos grandes valores humanos. Porque, senão, estamos a preparar, a construir, a formar, Eichmann’s educados e seres desumanizados" (n.d.r: Adolf Eichamann foi tenente-coronel das SS alemãs, responsável pelo extermínio de milhares de pessoas durante o Holocausto. Era conhecido como o executor-chefe do Terceiro Reich).
A educação e o conhecimento são muito importantes, mas têm de ser emoldurados por esses valores. O Eichmann foi um monstro e, no entanto, quando foi julgado, a Hanna Arendt foi assistir e disse que ele deu provas de conhecimento da filosofia, sobretudo a kantiana. Mas do que é que isso lhe valeu? Mandou matar milhares de seres humanos, sem dó nem piedade. Faltaram-lhe os tais valores que o humanizariam e não consentiriam que ele fizesse isso.
A Fundação Pró Dignitate tem dois propósitos, combater a violência e promover os direitos humanos. São duas causas que abraça.
São muito importantes. A Fundação começou com isso. Comecei por me preocupar muito com as mensagens de violência, sobretudo nos meios de comunicação, e a convidar pessoas minhas amigas, de qualquer quadrante político, que tivessem as mesmas preocupações e os mesmos valores. Para falarmos sobre essas circunstâncias e a maneira de encontrar caminhos para vencer esses problemas. E organizei vários seminários, com professores universitários, com sacerdotes, com pessoas da máxima categoria e depois, a certa altura, fez-se a Fundação para termos um sítio onde assentássemos e continuássemos com essa troca de impressões, o que temos feito. Sempre com a preocupação da paz e da tolerância. E até foi nesse sentido que o meu colaborador, António Pacheco, foi recentemente dar um curso de formação de jornalistas para a paz na Guiné-Bissau. Isso resultou muitíssimo bem, encontraram um elo de ligação com uma Universidade americana, de Rhode Island, onde existem muitos indivíduos de língua portuguesa. Da Guiné, de Cabo Verde, etc. Assentaram em que assinássemos um protocolo e eu foi lá fazê-lo para continuarmos essa acção de formação para a paz e até alargá-la a outros países. E vamos fazê-lo. A própria CPLP está de acordo com isso. Eu já tinha estado naquela região há muitos anos quando o meu marido era Presidente e fiz muitos "speaches" aos portugueses e luso-americanos que lá viviam. Até andava sempre comigo um Kennedy que queria ser eleito senador por aquela região e acabou por ser.
Sente sempre a pressão, a sombra do seu marido, na forma com as pessoas olham para si?
Não. É natural que olhem para ele. Ele tem muito mais importância do que eu, por ter desempenhado funções muito importantes, e continua a pronunciar-se através dos artigos que escreve e das conferências que faz e fá-lo, penso, com bastante inteligência e conhecimento. Portanto, é natural que ele tenha muito mais importância do que eu. Não me comparo com ele. Mas também gosto de fazer alguma coisa que não esteja só dependente da acção dele. Embora o aprecie muito e seja a maior admiradora que ele tem.
Conviveu recentemente com a doença. Teve um cancro. Como é que lidou com a situação?
Aceitei. Com uma certa serenidade. Uma das coisas que não queria era ficar inválida. Poder mexer-me, isso é uma riqueza extraordinária. Ainda no outro dia estive com uma amiga, que já não via há muitos anos que é pintora, a Maria Keil do Amaral, viúva do arquitecto Keil do Amaral, porque fomos participar numa sessão no Casalinho da Ajuda. Eu vi-a. Mexendo-se perfeitamente, falando perfeitamente. E eu, a certa altura, perguntei-lhe: ò Maria Keil, diga-me lá com quantos anos é que você está? Noventa e seis. E eu disse-lhe: não diga a ninguém que têm 96 anos porque ninguém acredita. Perfeita. Muito bem. Excelentemente. E é isso que me interessa. Não ter aquelas doenças horríveis dos alzheimers, disso é que eu tenho medo, mas que a gente se possa mexer. Por isso é que tenho medo de dar quedas. Este Verão dei um trambolhão porque me pus a jogar à bola com a minha neta de três anos. Mas foi uma pequena queda.
Tem quantos netos?
Cinco. Três já formados. Três jóias que nunca se quiseram servir das posições, nem do avô nem do pai. Pelo contrário. A mais nova é a Lilá e outro é o Jonas, que fez sete. E tenho três do primeiro casamento do meu filho – uma arquitecta, uma médica e um que é formado em História. Quando o avô era Presidente da República nem queriam que se dissesse que eram netos dele. A minha neta mais velha, que é arquitecta, um dia chegou ao pé de mim e disse assim: ó avó, eu e a Joana inscrevemo-nos no Erasmus. E eu disse-lhe: então deviam ir para Itália. E ela pediu-me para não dizer nada a ninguém. E eu disse-lhe: olha Inês, eu por acaso conheço o Presidente da República, que era o Óscar Scalfaro e a filha, conheço o Cossiga, conheço imensas personalidades italianas de relevo, mas a avó dá-te a palavra de honra que não pede nada a ninguém. Passado quase um mês ela chega ao pé de mim e diz: avó, a Joana disse que vamos para Itália, a avó não pediu nada? E eu disse-lhe: a avó não te deu a palavra de honra? Eu não pedi nada a ninguém, vais pelo teu mérito. E isso é bom. Há os que querem o contrário, mas eles não. Isso dá-me uma grande satisfação e um certo orgulho.
Em Dezembro do ano passado, numa entrevista à revista "Única", a propósito da doença, afirmou: "encarei a possibilidade de me ir embora com uma certa tranquilidade". Porquê tranquilidade?
Porque pensei que era a ordem natural das coisas, e foi a adesão à fé que me deu força para ultrapassar a situação.
Mas manteve-se activa?
Sempre. Ainda não parei. Os meus pais foram muito activos até morrerem. Os meus irmãos também. Por isso há aqui uns genes que herdei que funcionam razoavelmente.
A morte, para si, significa o quê?
É qualquer coisa que pode suceder a qualquer ser humano e por isso temos de a encarar com tranquilidade porque, enfim, é qualquer coisa a que não podemos fugir. De maneira nenhuma.
E a dor?
Custa mais a suportar. Eles, lá em casa, dizem que eu nunca me queixo. Queixar para quê, se estou a maçar os outros e posso aguentar.
Maçar, como assim?
É preocupá-los. Se puder aguentar, aguento. É também um garante da minha independência.
Por oposição à morte a vida significa o quê?
É a felicidade máxima, se a vida tiver qualidade.
Frequenta a Igreja?
Vou aos domingos à missa do Campo Grande. Sou muito amiga do monsenhor Feytor Pinto, que dirige ali a Igreja, e eles na paróquia fazem um trabalho de solidariedade social que é interessantíssimo. Mas isso hoje não faz notícia, não é? Mas se houver assim um "escandalozinho", aí vai notícia para o jornal.
Como é que preenche o seu dia?
Venho para aqui [para a Fundação Pro Dignitate], mas não só. Vou a outros lados. Hoje fui à missa do nosso amigo que morreu, vou falar a outras lados, a escolas…
Sente-se uma pessoa útil?
É isso mesmo. É sentir, por pouca utilidade que tenha, que tenho alguma. Não é para estar sentada frente a uma televisão. Eu tive um irmão, que era engenheiro e que um dia me disse: "ó ‘Juju’ vou-me reformar. E eu disse-lhe:" tu estás louco Alberto! Tu que és um homem ainda tão novo e cheio de energia". Ele tinha cinquenta e tal anos. Reformou-se, pôs-se sentadinho defronte da televisão, muito quietinho, morreu em poucos anos. É importante fazermos qualquer coisa. Eu não posso fazer muito porque não sou nada de especial, mas o que faço é de alma e coração.