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Governo gasta demais? Frente a frente entre dois economistas
A estratégia orçamental do Governo, em particular a subida da despesa, tem sido louvada à esquerda e criticada à direita. O Negócios convidou Joaquim Miranda Sarmento e José Reis a analisarem as escolhas de Mário Centeno.
Baixar défice com dividendos e juros entre a batota e a arte
Mário Centeno tem sido criticado por não aproveitar a baixa de juros e a subida dos dividendos do banco central para reduzir ainda mais o défice, em particular num contexto de crescimento económico acima do esperado. O mais visível dos economistas a defendê-lo foi Daniel Bessa, ministro da Economia por cinco meses de António Guterres, que atirou: "Com o crescimento que a economia está a ter, no mínimo, eu tinha um défice zero. Mais: em vez de zero eu propunha 0,5% de excedente".
Bessa não está sozinho. O Conselho das Finanças Públicas (CFP) nota que a redução de défice tem dependido quase exclusivamente dos juros, escreveram na avaliação ao Orçamento. Joaquim Miranda Sarmento, professor do ISEG que se tem distinguido pela defesa de uma política orçamental mais conservadora, acrescenta os dividendos do banco central como factores que deveriam servir para baixar mais o défice e a dívida pública, em vez de por exemplo financiarem subidas de despesa, como salários e pensões, considerados pelo CFP como "as componentes mais rígidas da despesa".
Do lado do governo e dos seus defensores, a perspectiva é outra. No equilíbrio entre a necessária redução da dívida pública e a satisfação das exigências políticas que permitem a geringonça, o ministro das Finanças tem usado sem parcimónia a ajuda dos juros e dos dividendos para ir "reduzindo o défice orçamental sem austeridade", como lhe foi recomendado pelos economistas do grupo de trabalho criado pelo PS e pelo Bloco de Esquerda para estudar a reestruturação da dívida pública. No início deste ano, este grupo defendeu pagamentos antecipados de dívida ao FMI para baixar juros e menos provisões no BdP para aumentar dividendos do Estado. "Os factores pontuais são úteis quando estão ligados a bons objectivos que podem ser prosseguidos com a política orçamental", sintetiza José Reis, da Universidade de Coimbra, que dá nota positiva ao Governo.
Regras cumpridas, mas...
A seu favor Mário Centeno tem o facto de os dividendos das empresas públicas (como o Banco de Portugal) e juros contarem como receita e despesas estruturais, o que lhe permite ir cumprindo, ainda que no limite, as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Só que consegue-o sacrificando a lógica mais conservadora das regras, defende por exemplo o CFP, que em Novembro acusou o Governo de fazer batota no cumprimento das regras. A avaliação foi secundada, ainda que subtilmente, pelos serviços da Comissão Europeia na sua análise ao OE, quando escrevem que, sem a ajuda dos juros, e mesmo aceitando as previsões do Governo, o saldo estrutural "tem uma melhoria menos pronunciada", de apenas 0,1 pontos em 2017, seguido de uma estagnação em 2018.
Centeno, por seu lado, argumenta que regras são regras, incluindo a flexibilidade que permitem. São um algoritmo, defendeu numa entrevista ao Negócios no ano passado, tendo desde então cumprido o que lhe é exigido nos limites políticos permitidos. O governo pode ainda argumentar que tanto a folga oferecida pelos dividendos do Banco de Portugal (que resultam dos lucros feitos com a dívida pública nacional comprada ao abrigo do programa de compra de títulos do BCE), como as taxas de juros baixas (em boa parte também permitida pela intervenção do BCE) serviram exactamente para os governos poderem aliviar a política orçamental, considerada por muitos como demasiado restritiva na Zona Euro ao longo da crise.
O que fazer?
O argumento será válido na justa medida em que se acautelem os riscos orçamentais do país. Aqui a avaliação torna-se ainda mais traiçoeira do que com as regras europeias. Por um lado, é expectável esperar juros baixos em Frankfurt até 2019 ou 2020, e a manutenção dos actuais níveis de dívida pública no balanço do banco central até depois disso. Ou seja, estas ajudas estão para ficar por bons anos. Por outro lado, numa economia com uma das maiores dívidas públicas do mundo, baixo potencial de crescimento e inserida numa zona económica a recuperar, parece razoável defender que pelo menos parte destas ajudas pontuais financiassem reduções mais rápidas de dívida pública, através de saldos primários crescentes, o que não acontece entre 2017 e 2018.
O OE nos semáforos da UE
A política orçamental está sujeita a quatro regras europeias, sendo a mais importante a redução do défice estrutural. Centeno chumba numa e passa à justa nas restantes.
Redução de saldo estrutural
As regras europeias prevêem uma redução do saldo estrutural de 0,6 pontos de PIB em 2017 e 2018, sendo tolerados desvios de 0,5 pontos. O Governo diz que conseguirá melhorias de 0,2 pontos em 2017 e 0,4 pontos em 2018, mas a Comissão Europeia prevê que se fique por uma melhoria de 0,2 pontos em 2017 para 1,8% do PIB, estabilizando nesse valor em 2018. Por isso, considera que Portugal está em risco de incumprimento das regras europeias.
Redução de dívida pública
Entre 2017 e 2019 Portugal está sujeito a uma regra especial de redução de dívida pública aplicada aos países que estavam sob Procedimentos dos Défices Excessivos, que é menos exigente que a aplicada a outros Estados-membros. Mesmo assim, de acordo com as previsões da Comissão Europeia, Portugal só cumpre porque usa a flexibilidade permitida nas regras, que exigem melhorias do saldo estrutural de 0,2 pontos e 0,3 pontos em 2017 e 2018, mas admitem desvios de 0,25 pontos.
Evolução da despesa
No manancial de regras europeias há uma aplicada aos gastos: define que a despesa que depende exclusivamente do Governo (ou seja, subtraída da parte cíclica dos gastos com desemprego, das despesas juros e com fundos europeus, do investimento médio dos últimos três anos), subtraída dos aumentos de impostos, não deve crescer mais que o PIB potencial. Ora no caso português, isso significa por exemplo que só deveria crescer 0,1% em 2018. Ora, os desvios em 2017 e 2018 são de quase 1% do PIB, ou dois mil milhões de euros.
Margem de segurança face a limite de 3%
As regras do PEC definem ainda um valor mínimo de referência do saldo orçamental estrutrual que deve ser respeito pelos vários países que tem em conta a volatilidade do ciclo económico e sensibilidade do orçamento a recessões, de forma a garantir que não violam o limite de défice de 3% do PIB. No caso português este valor está em 1,6%. O Governo espera cumprir este critério em 2018 (-1,4% do PIB): o Conselho das Finanças Públicas aponta para 1,5% do PIB, mas Bruxelas para 1,8% do PIB.