Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Notícia

O lado B da crise

Ninguém opta por demorar mais tempo até ao trabalho nos transportes, nem há registo de alguém que tenha voluntariamente escolhido passar a cozinhar o seu almoço de manhã. Mas há quem veja nisso algo que pode servir de inspiração.

O lado B da crise
  • 3
  • ...
"É uma treta trocar o carro pelo metro, e até sai caro. Não tarda nada, com os aumentos anunciados para o passe, é quase a mesma coisa e são tão poucas vezes que agarro na chave e a rodo na ignição, que até já foi uma bateria à vida". A consultora de comunicação, Diana Ralha, de 33 anos, resume o sentimento de quem se vê obrigado a mudar de hábitos como consequência dos efeitos da crise na carteira.

Ninguém opta por demorar mais tempo a chegar ao trabalho, nem há registo de alguém que tenha voluntariamente escolhido passar a cozinhar o seu almoço de manhã, em casa, antes de sair para o trabalho. É por falta de alternativas que estas escolhas são feitas. Mas se é verdade que é por necessidade que muitos portugueses se vêem obrigados a mudar os seus hábitos diários, não é menos verdade que a necessidade aguça o engenho e potencia a criatividade. E são muitos os exemplos de pessoas que encontraram nessa mudança forçada aspectos positivos.

"O lado bom da crise não existe", refere Diana Ralha, mas tal não invalida que haja casos de
Diana Ralha
A consultora passou a ir de metro para o trabalho e a almoçar a casa. "O que mudou mais? Todo o meu padrão de consumo", garante. Para já, "é uma espécie de jogo da poupança e não de sobrevivência".
pessoas que encontraram na crise, não um lado bom, mas antes um lado "menos mau", que possa servir de inspiração a outros.

Ir às compras sem filhos e sem... fome

Os hábitos de consumo são, naturalmente, os que sofrem alterações mais significativas e, por vezes, pequenas mudanças nessas rotinas podem significar grandes poupanças. Mariana Távora, advogada de 39 anos, passou a ter duas preocupações quando pensa na ida ao supermercado. Deixou de ir com uma periodicidade mensal porque, explica, "quando assim se faz, como falta sempre qualquer coisa, acabava por ter de ir sempre ao supermercado a meio da semana e trazia, inevitavelmente e sempre, mais qualquer coisa com bom aspecto. Passei a fazer as compras semanalmente", adianta a advogada.

A outra e, talvez mais curiosa, alteração nas idas ao supermercado prendeu-se com o período do dia em que se vai às compras. A hora das refeições foi "riscada". "Evito ir à hora de almoço pois, com fome, traz-se sempre mais coisas e guloseimas", explica Mariana Távora, reconhecendo o esforço consciente de fugir às "perigosas" compras por impulso.

Ana Oom, professora de 42 anos, deixou de fazer as compras de supermercado "online". "A facilidade de entregar em casa levava a comprar mais e em maior quantidade. Passei a comprar num supermercado mais pequeno, onde vou mais vezes, mas sempre com muito cuidado. Sou mais racional nas escolhas e, quando chego à caixa, sei quase sempre o valor aproximado que vou pagar".

Também os filhos podem ser "inimigos" da poupança na altura de ir ao supermercado. Para os mais novos todas as compras são por impulso, cuja gestão pode, por vezes, significar desgaste extra, na carteira e não só. "Deixei de levar os meus filhos quando vou às compras", adianta Sónia Diz. Para a formadora, que admite ter adoptado uma "filosofia de comprar o estritamente necessário", deixar os filhos em casa quando vai ao supermercado é sinónimo de "menos stress e menos compras".

As crianças, de resto, podem transformar-se em agentes de poupança em vez de fontes de despesa. É preciso é ter imaginação. Diana Ralha só compra roupa para os filhos nos saldos e assume a decisão de comprar "tamanhos grandes que dêem para o ano seguinte". Já Mariana Pessoa e Costa deixou de comprar roupa cor-de-rosa para sua filha mais velha. À partida pode parecer despropositado, mas a compra de roupa azul – "ou outra cor sem ser cor-de-rosa" – para a mais velha significa que o mais novo pode, mais tarde, usar roupa da irmã. "Ele herda a roupa da irmã e estamos também a poupar", orgulha-se a advogada.

Também os meios de pagamento estão a sofrer alterações com a crise. Os cartões, sejam de débito ou de crédito, são usados com maior parcimónia. Francisca Lourenço, de 38 anos, acabou com os cartões de crédito. "Passámos a perceber que pagar com o que temos, é melhor e mais fácil de controlar", refere. No caso de Diana Ralha foi o cartão de débito que "sofreu" com a crise. "Deixei de pagar coisas com o multibanco. De dois em dois dias levanto 20 euros e estico-os ao máximo, gerindo assim o orçamento e resistindo à tentação de uma qualquer bagatela à mão de semear de um cartão de plástico", explica a consultora de comunicação.

Marcas "brancas" e mercados locais ao poder

Em tempo de contar tostões, as marcas próprias das distribuidoras e os mercados locais aparecem como trunfos de quem quer poupar. Inês Custódio decidiu passar a "cozinhar quase tudo em casa", decisão também motivada pela crise que fez com que descobrisse que "é um prazer ir à praça, aos mercados biológicos e conversar com os vendedores". Em casa de Sónia Diz, "as batatas, frutas e legumes passaram a ser comprados no mercado", onde os produtos, "além de terem muito melhor qualidade, são muito mais baratos".

Também os mais recentes negócios de imigrantes podem representar boas oportunidades, como refere Diana Ralha. "Os frescos compro--os nas frutarias chinesas da minha avenida, que praticam preços inacreditavelmente baixos", adianta. Mas há quem, com a crise, tenha passado a ter a preocupação de defender a produção nacional. Mariana Pessoa e Costa só compra fruta portuguesa "para ajudar os nossos agricultores. Se não houver, não se compra", esclarece a advogada.

Uma "táctica" que parece ser comum a todos é a opção pelas marcas próprias das distribuidoras. A ditadura do preço favorece a compra desse tipo de produtos e são vários os testemunhos recolhidos pelo Negócios que lhes fazem referência. Francisca Lourenço admite que as compras de casa são "um grande absorvente de dinheiro", pelo que a escolha passou a recair sobre as "marcas brancas, e as mais baratas dentro dessa gama".

O vestuário e os transportes são duas categorias onde a poupança dos portugueses se faz sentir
Sónia Diz, 41 anos

Comprar "o estritamente necessário" foi a regra de ouro adoptada na família. Para superar a quebra nos cursos de formação, está a lançar um projecto próprio.
nesta altura de maior dificuldade. A reciclagem de roupas é muitas vezes mencionada. Poupa nas idas às lojas e puxa pela criatividade de quem opta por encarnar o papel de costureira.

"Como não compro como antes, agarrei em vários vestidos e cortei mangas, ou barras de uns vestidos cujos padrões já estavam usados", refere Mariana Távora. "É divertido e ficamos com roupa praticamente nova", sublinha.

A estudante Joana Tubal também optou por fazer ela própria alterações no seu guarda-roupa. "Hoje evito entrar num shopping", começa por dizer. "Vou aos armários da minha mãe e reutilizo. Dizem que está na moda", justifica a estudante.

Descobrir novos locais na cidade onde se mora há anos ou ficar em forma, são algumas das vantagens valorizadas por quem passou a andar mais a pé e de transportes públicos para cortar nos gastos com combustível. "Melhora o estado físico e, no meu caso, faz-me pôr a cabeça em ordem, sem o stress da atenção que é necessária a conduzir", conta Leonor Tenreiro, formadora de escrita criativa.

Novos negócios em tempo de crise

Mas nem só de poupanças se faz a "nova" vida dos portugueses. A actual conjuntura, nalguns casos, parece ter despertado o sentido de risco de alguns. Foi o caso de Sandra Casanova e do marido que há dois anos abriram uma panificadora. "Nós viemos da crise e sem dúvida que [essa experiência] foi uma vantagem competitiva neste projecto", garante ao Negócios a empresária. O negócio tem sido feito de avanços e recuos, mas Sandra Casanova mostra-se orgulhosa do projecto. "Tivemos que ter a preocupação das donas de casa, de gerir sempre o dia-a-dia, definimos planos de pagamentos e agarrámo-nos àquilo como se fosse a nossa vida", reconhece.

Também Inês Custódio se aventurou por novos caminhos empresariais. "No meio desta crise
Sandra Casanova, 39 anos


O desemprego do marido levou-os à criação da empresa. A panificadora é gerida com a preocupação de poupança das donas de casa. "Viemos da crise e isso, foi uma vantagem", diz a empresária que durante oito anos foi mãe solteira.
desvairada, resolvi deixar o antigo emprego e criar uma empresa. Para essa decisão não redundar numa loucura completa tive de fazer ainda mais poupanças. Consegui vender a minha casa com algum lucro, livrei-me da hipoteca e agora arrendo um apartamento mais pequeno e barato", conta a futura empresária.

Mesmo não mudando de área de negócio, há quem se veja obrigado a diversificar dentro da sua área. É o caso da actriz Maria Botelho Moniz que admite ter apostado "numa vertente diferente de carreira", uma vez que, "com a crise, há cada vez menos produções, logo, menos trabalho para os actores". A actriz optou assim por "alargar as hipóteses de trabalho e tentar uma nova área. Hoje sou apresentadora do Curto Circuito (SIC Radical)", refere Maria Botelho Moniz.

Para superar o facto de os projectos de formação em que estava envolvida estarem a ser cancelados, Sónia Diz juntou-se ao cunhado, formador de informática, e a uma amiga, especializada em Marketing, ambos desempregados, e decidiram lançar um projecto de desenvolvimento de cursos de formação. "Poderemos conseguir dar a volta", afirma esperançada.

Dar formação, explicações e cursos de escrita criativa foram as alternativas encontradas por Ana
Inês Custódio, 37 anos

A futura empresária vendeu a casa para lançar um projecto não fosse "uma loucura completa". Hoje, vive de forma diferente.
Oom para compensar os cortes salariais e de subsídios a que tem sido sujeita como funcionária pública. "Quando pensava que não tinha tempo para mais nada, afinal, com jeito, há sempre mais um buraquinho para encaixar mais uma hora disto ou daquilo" e conseguir "ter outras fontes de rendimento".

Além de novos negócios, os portugueses também estão a recorrer a negócios antigos, que agora prosperam. Sítios de Internet de vendas, como o OLX e o Custo Justo, são mencionados como importantes para aumentar as receitas familiares. "Descobri que posso ganhar muito dinheiro a vender tralhas dos miúdos e parafernália variada na Internet. Consegui a proeza de vender o carrinho de bebé do [filho] mais novo mais caro do que o comprei", congratula-se Diana Ralha.

A crise não traz nada de bom... Tem a certeza?

Encontrar novas fontes de rendimentos e cortar nas despesas com novos hábitos de consumo são os grandes objectivos das diversas iniciativas que muitos portugueses estão a adoptar para sobreviver aos tempos de austeridade. Fazem-no porque não têm alternativa. E, no caso de quem deu o seu testemunho ao Negócios, vão conseguindo dar a volta à crise, porque não vivem situações desesperadas. Mesmo assim, à primeira vista, recusam ver o lado positivo da sua mudança de vida.

"De bom, bom, ainda não vi nada", assegura Aida Pestana. No entanto, a crise levou esta professora de 46 anos a "reforçar alguns ensinamentos" aos seus filhos. "Estamos a aproveitar para fazer com que valorizem mais o ser do que o ter", reconhece.

Para Mariana Távora, "o aspecto mais positivo da crise" está à vista: "as pessoas aproximaram-se
Mariana Távora, 39 anos

A advogada passou a ir semanalmente ao supermercado e deixou de ir à hora de almoço para fugir às tentações.
mais umas das outras, ajudam-se mais, passaram a jantar em casa de uns e de outros, quando sabem que esses outros neste momento não podem jantar fora", refere. Esta aproximação também está a acontecer no local de trabalho. "Temos uma copa onde nos juntamos todos a almoçar", adianta Marta Dotti, assessora de marketing na Remax. "Ficámos a conhecer-nos melhor, estamos mais unidos e como falar de trabalho é inevitável a comunicação entre departamentos até melhorou".

Diana Ralha até se diverte com a alteração do seu estilo de vida. Transformou o "hobby" do crochet em fonte de rendimento, com a organização de "workshops" e venda de produtos. Começa por sublinhar que "não há lado bom da crise". Mas acaba a dizer: "por ora, é uma espécie de jogo da poupança e não da sobrevivência. Confesso até que é divertido, porque ainda nada me faltou".

Ver comentários
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio