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Miguel Faria e Castro: “A União Europeia e a Comissão são muito más a responder a este tipo de crises”
Miguel Faria e Castro frisa a importância do BCE para o financiamento barato aos países. Mas defende que seria preciso uma nova ferramenta de estabilização na União Europeia.
O sobre-endividamento generalizado na UE deixa o BCE refém dos países?
Sim. Mas há uma aversão tão grande à inflação no BCE que se houver inflação o BCE vai agir. É possível sustentar níveis elevados de dívida sem muita acomodação monetária, aconteceu no Japão antes da crise financeira. O mais importante é que o BCE se comprometa a uma política de ‘lender of last resort’. Foi mais ou menos o que aconteceu com o discurso de Mario Draghi em 2011, com o ‘whatever it takes’. Mas há dinâmicas que não são fáceis de prever e de facto o BCE está em parte refém de Estados, como Itália ou Espanha, que em termos absolutos têm dívidas astronómicas.
O ministro das Finanças português disse que a política monetária na UE está esgotada e que falta outro mecanismo de estabilização macroeconómica. Concorda?
Sim e não. Admira-me que seja o ministro das Finanças a dizer isso quando os custos de financiamento do Estado português são extremamente subsidiados pelo BCE. Nessa medida, a política não está esgotada. Mas de forma geral concordo. O BCE está a fazer tudo o que pode dentro dos limites legais. A zona euro e a UE têm problemas estruturais que só podem ser resolvidos com política orçamental. Já a crise anterior tinha o demonstrado, mas esta veio reforçar: a União e a Comissão Europeia são muito más a responder a este tipo de crises. Existe alguma política orçamental na UE, mas é muito pequenina e não é flexível o suficiente para responder a crises deste género.
Eles acabam por delinear estes programas que são ad hoc, como o Next Generation EU, mas nem se pensou na UE em criar uma política europeia de resposta direta à crise em 2020. As coisas fazem-se muito devagar. Compreendo porquê, é preciso criar consensos. Mas perdem-se meses e meses a negociar enquanto a crise devasta as economias dos Estados-membros. Temos de ter uma estrutura para responder de forma quase automática, em vez do esquema atual que é baseado em orçamentos plurianuais. Fazemos orçamentos para os próximos cinco anos, mas eu sei lá se daqui a quatro não vai haver uma guerra entre a China e a Rússia.
O Fundo de Recuperação pode ser a génese dessa nova ferramenta de estabilização macroeconómica?
Penso que deve ser uma coisa diferente. O Fundo de Recuperação foi desenhado em cima do joelho. Não sou especialista em assuntos europeus mas, pelo pouco que percebo, é muito semelhante a um orçamento plurianual da UE. É simplesmente mais dinheiro por cima disso. Espero que se decida avançar para uma estrutura mais permanente de estabilizadores automáticos de política orçamental. Um dos problemas deste fundo de recuperação é que há muitas restrições ao que pode ser feito com o dinheiro. Isso é parcialmente uma das razões pelas quais a taxa de execução do investimento público em Portugal é tão baixa. O Governo podia ser muito mais competente, mas a culpa não é toda nossa.
Isso não responde à crise?
Numa altura de crise temos é de gastar dinheiro rápido, mesmo que 5% dos fundos vão parar às mãos de quem não merece. Agir rapidamente mais do que compensa as falhas do sistema. Isso foi muito enfatizado nos EUA em 2020, quando a crise começou. A UE encalha neste problema.
No caso do NextGeneration EU, as subvenções podem dificultar que os países mais ricos aceitem dar dinheiro para objetivos só nacionais.
O NextGeneration EU são fundos estruturais com uma cor de batom diferente. São fundos que têm objetivos de mais longo prazo. E aí acho que faz sentido haver condições e restrições aos investimentos. Estava a referir-me a essa hipotética política orçamental de estabilização automática. Em termos políticos vai ser complicado. Muitos dos países mais ricos da UE vão tentar aplicar restrições semelhantes às dos fundos estruturais ou de longo prazo.
No NextGeneration EU o Conselho Europeu tem poder reforçado. Haverá mais escrutínio sobre os mais endividados? Do Norte sobre o Sul?
Sim, conhecendo a história recente das instituições europeias não tenho dúvidas. Tem vantagens e desvantagens. Por vezes demasiado escrutínio é mau porque vêm fundos que não são utilizados. Mas por outro lado tem a vantagem de disciplinar o desenho dos planos de recuperação nessas economias. Uma das principais vantagens da adesão de Portugal à UE foi importar a qualidade das instituições da Europa Central.
Pode haver uma agenda de política económica imposta pela Comissão? Uma espécie de troika suave?
A um certo nível, sim. A UE está a impor as questões da transição digital e da economia verde. Se calhar nós temos outras prioridades a nível de investimento que não vamos conseguir colmatar com estes fundos. Mas a transição climática e digital teriam de ser enfrentadas, mais cedo ou mais tarde.