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Recorde a entrevista de Mega Ferreira ao Negócios em 2017

No dia em que faleceu António Mega Ferreira recordamos a entrevista dada pelo escritor ao Negócios em 2017, aquando da edição do livro “Itália – Práticas de Viagem”.

Miguel Baltazar
Fala de Itália como um dos lugares míticos da construção de uma identidade cultural europeia que se centra na luminosidade expansiva e sensual do Sul, em alternativa à sombria meditação de indução luterana do Norte da Europa. Mega Ferreira é um declarado apaixonado por esse país que, tal como a Europa, é um "patchwork" de diferenças regionais mas que, mais do que a Europa, tem uma cola cultural forte, de nome Dante. Quinze anos depois de "Roma, Exercícios de Reconhecimento", o gestor cultural lança o livro "Itália - Práticas de Viagem". Mentor da Expo'98, que celebra 20 anos em 2018, o antigo jornalista faz um balanço positivo da herança da mostra internacional, com excepção do Pavilhão de Portugal. Aplaude a renovada Lisboa. Critica a Justiça portuguesa. Foi reconduzido como director executivo da Associação Música, Educação e Cultura (AMEC/Metropolitana), instalada num edifício com vista para o Tejo. Sobre a mesa tem o seu novo livro com uma capa azul-céu. 


Está a admirar a capa do seu livro "Itália – Práticas de Viagem"?

É sempre bom olhar para a fotografia, mas não é a fotografia que é boa, Itália é que é magnífica. Olhei, o céu estava "azzurro", que não é "blue", é o azul italiano, mais forte, e tirei a fotografia. Em Itália, tudo é mais marcado, o bom e o mau. Ou é muito bom ou é muito mau, e isto é uma característica transversal aos diversos povos italianos. Sim, porque Itália tem diversos povos – não é possível dizer que um veneziano é igual a um siciliano –, é um "patchwork", uma coisa cheia de diferenças que se reuniu em torno de um projecto político, em meados do século XIX, e que atingiu uma unificação, que é sempre uma unificação condicionada porque os particularismos regionais são sempre muito fortes. Aliás, há movimentos políticos que são emanações desse regionalismo, como a Liga Norte, e isso tem que ver com a História do país.

 

O projecto político italiano é, a seu ver, bem­-sucedido, mesmo com os regionalismos bem marcados? Essa manta de retalhos funciona?

Sim e não, na medida em que é quase um milagre que, com aquela fantástica diversidade histórica, cultural e até étnica, o país tenha conseguido manter-se politicamente unido durante 150 anos e, nesse aspecto, posso dizer que foi uma experiência bem-sucedida, porque Itália está lá, existe e vive. Por outro lado, não é um projecto bem-sucedido, na medida em que esses regionalismos, embora sem a expressão dramática dos regionalismos em Espanha, por exemplo, prejudicam o próprio funcionamento de Itália enquanto entidade una.

 

Pode fazer-se uma analogia com a Europa, também ela um "patchwork". Enquanto projecto político, a Europa terá igualmente de ser objecto de um milagre?

Só será Europa se for um milagre. Ela pode continuar vegetando, que é praticamente aquilo que acontece, mas a ideia de integração europeia, de unificação comum em torno de um objecto estratégico a longo prazo, só poderá resultar através de um milagre. Além dos regionalismos, os particularismos são muitos. E depois temos o caso da Grã-Bretanha, que esteve aqui 50 anos e, de repente, dá uma coisinha má a um primeiro-ministro que achava que iria sair reforçado de um referendo, e ninguém sai reforçado dos referendos, sobretudo quando os convoca. Quem lança os referendos tem muita dificuldade em ganhá-los porque existe uma coisa que é o voto de protesto. E o cidadão comum, hoje em dia, diverte-se a exercer o voto de protesto, seja de que maneira for. Haverá sempre aquela célebre eleição presidencial francesa, em que a esquerda se dividiu entre dois candidatos e fez passar o senhor Le Pen à segunda volta.

 

Hoje, o cidadão diverte-se a exercer o voto de protesto, seja que de maneira for [...]. Tornámo-nos profundamente levianos. 

 

Mas acha que nós, cidadãos, somos assim tão levianos?

Somos profundamente levianos. Nos últimos 30 anos, tornámo-nos profundamente levianos. Por um lado, por causa da evolução da sociedade em direcção ao mercado, por outro lado, devido à disseminação do digital, que nos tornou profundamente superficiais, não aprofundamos nada. O desinvestimento na imprensa escrita corresponde também a isso, as pessoas deixaram de comprar jornais porque já não têm tempo nem pachorra para ler e aprofundar. Somos cidadãos com muito mais informação em bruto, mas somos cidadãos menos informados. A nossa capacidade para aceder a informação é incomparavelmente maior, depende de cada um de nós. Mas, para tal, precisamos de armas anteriores que nos permitam seleccionar a informação.

 

E essas armas estão na educação, é isso?

Pois estão. E as gerações mais novas, pura e simplesmente, não têm essas grelhas de análise. Repare no terrível desinvestimento que se fez na memorização. É um crime. A memória é um dos maiores veículos de aprendizagem. A memorização era um dado natural da instrução.

 

Mas era importante decorar os nomes dos rios e das linhas de caminho-de-ferro, como acontecia antes do 25 de Abril?

A memorização é importante como exercício. Posso dizer-lhe, de seguida, a "Balada da Neve" (Augusto Gil) ou "O Menino de Sua Mãe" (Fernando Pessoa), que aprendi na escola.

 

Mas era inevitável uma mudança no modelo pedagógico, não?   

Sim, o que não era inevitável era a campanha que, a partir de dada altura, se fez contra a memorização. Tudo é consultável no momento… pois, mas se a memória não estiver trabalhada, pouco fica cá dentro e é conveniente ter coisas cá dentro, é preciso que a gente retenha algumas coisas, é a isso que se chama a cultura de uma pessoa. Por que razão é que em Itália, em 2006, o Roberto Benigni lançou um espectáculo chamado "Tutto Dante", no qual dizia, para milhares de pessoas, "A Divina Comédia", de Dante? O poema do Dante é algo naturalmente memorizável pelos italianos e isto tem um forte papel no reforço da identidade nacional. O tal milagre italiano existe por causa de coisas como esta. Dante é o poeta nacional. Ou seja, os italianos vêem-se a si próprios, como nação, através de um poeta e de um poema, e esta consciência de serem uma nação é essencial para que o milagre funcione. A sua especificidade e diversidade são mantidas no quadro de um cimento cultural que os une.

 

O papel de Dante em Itália pode ser comparável a um Camões?

Nós nunca assumimos um Camões. Ele só é reivindicado pela primeira vez como cimento da pátria imperial com o Ultimato do final do século XIX. "Quem nos defende?" É o espírito de Camões. Mas, na verdade, Camões nunca foi assumido pelos portugueses como o poeta nacional. Quantas pessoas sabem dizer as primeiras estrofes de "Os Lusíadas"? Eu conheço umas cinco ou seis, não mais. É praticamente impossível acontecer aquilo que aconteceu um dia em Itália: eu ia num carro conduzido por um motorista, estávamos a conversar e, a certa altura, fala-se do Dante e eu digo: "Nel mezzo del cammin di nostra vita", e o homem que ia ao volante volta-se para trás e continuou a dizer os primeiros versos da "Divina Comédia". Duvido de que se, aqui, eu disser "As armas e os barões assinalados…", alguém me responda "…que da Ocidental praia Lusitana. Por mares nunca de antes navegados. Passaram ainda além da Taprobana".

 

Não existe orgulho na nossa identidade?

Historicamente, os portugueses nunca foram um povo marcado pela auto-estima.

 

Já os italianos…

Em Itália, há grandeza e a grandeza dá para tudo, também dá para a soberba e para a arrogância. Ou para os crimes mais hediondos. Ou dá para coisas como a maravilhosa resposta do (escritor veneziano) Giacomo Casanova a Madame de Pompadour, quando esta lhe perguntava se ele tinha chegado "lá de baixo". Ele diz: "Veneza não é lá em baixo, Madame; Veneza é lá em cima." Esta resposta é significativa porque representa de facto aquilo que os italianos pensam de si mesmos. Todas estas cidades-estado desenvolveram uma certa consciência e uma certa auto-estima que, por vezes, redundam numa certa arrogância, há que reconhecer. Mas a grandeza também dá para histórias como a do pequeno Matteo, um menino de oito anos da província de Ferrara que inventou uma palavra nova – "petaloso" – reconhecida pela Accademia della Crusca, a autoridade nos assuntos de língua italiana.

 

Quer contar a história?

Quero, é maravilhosa. No início do ano passado, o pequeno Matteo usou numa redacção o adjectivo "petaloso" a propósito de "un fiore". Ele queria dizer que era uma flor com muitas pétalas. A palavra não existia nos dicionários, mas a professora achou-a muito bonita e incitou o aluno e a família a escreverem à Accademia della Crusca. Três semanas depois, a academia responde e a resposta era não só positiva como entusiástica. A palavra era belíssima, estava correctamente formada mas, para entrar no vocabulário, teria de ser utilizada por muita gente para assim se tornar de uso comum. Em pouco mais de um mês, os italianos juntaram-se nas redes sociais e espalharam a palavra, diziam que era tudo muito "petaloso". E foi assim que, em poucos meses, a língua italiana criou uma nova palavra. A língua italiana está viva.   

 

A história do Matteo poderia ter acontecido em Portugal?

Em Portugal, seria impossível. Basta olhar para o escândalo que é a reacção ao acordo ortográfico. É inacreditável que, 27 anos depois de o acordo ter sido aprovado – e aprovado duas vezes por unanimidade no Parlamento – as vozes do passado tenham voltado a erguer-se no momento em que iria entrar em vigor. O acordo tem de ser melhorado, aceito isso. Mas contestá-lo dizendo que vamos ficar a escrever como os brasileiros, caramba... A tudo isto subjaz uma coisa pior, de natureza cultural, que é a reacção à inovação. Existe a ideia de que determinadas formulações de natureza cultural, como a língua, se fixam no tempo e ficam imutáveis. Para que a língua se mantenha viva, é preciso que seja uma entidade dinâmica e aquele exemplo italiano do pequeno Matteo parece-me extraordinário.

 

A integração europeia só resultará através de um milagre [...]. O senhor Trump pode ser um bom cimento para ajudar na consolidação da Europa. 

 

Falámos da cola italiana que é Dante. Na Europa, o que é que ainda pode funcionar como cimento cultural?

Dante, Shakespeare e Cervantes são símbolos universais. Não há nada mais universal do que o Dom Quixote. Hoje, tudo é mais complicado porque se alargou exagerada e artificialmente a União Europeia a 28 países, meteram-se cá dentro países que nem sequer pertencem à nossa tradição histórica, pertencem a outros espaços culturais. Tudo isso deveria ter sido feito com mais cuidado. Há muito tempo que escrevo contra os alargamentos loucos. Mal os países se sentam, já estão a meter mais convidados numa mesa que tem poucas cadeiras. Apesar de tudo, existem cimentos importantes. Penso que o senhor Trump é um bom cimento. Pode ser, "a contrario sensu", um bom cimento para ajudar na consolidação da Europa.

 

Dizia que em Itália era tudo mais marcado, o bom e o mau. Tem a máfia, teve Berlusconi, tem a corrupção no futebol. Como avalia a actual situação política? 

Nasci em 1949 e toda a minha vida foi atravessada com Itália numa enorme confusão, cresci com a ideia de que, naquele país, quem governa são os directores-gerais e os governos caem uns atrás dos outros. As fracturas regionais passam pela vida política italiana em Roma, no centro do poder italiano. Há a concepção de que o país lá vai andando apesar dos políticos ou mesmo contra eles. E Itália é um dos países mais apetecíveis, é deslumbrante, e não é deslumbrante em ruínas, também as tem, mas é um país que anda, que funciona, que vive diariamente. Temos a ideia de que está paralisado, mas o que está paralisado é o acordo entre os partidos.

 

Como olha para Portugal e, precisamente, para o acordo entre os partidos?

Portugal está completamente a mexer. Conjunturalmente, o país está consideravelmente melhor, os indicadores que temos são sinais disso, e mudou sobretudo o ambiente político.

 

Mesmo depois da tragédia de Pedrógão Grande e do assalto a Tancos?

Sim, mas também assistimos ao crescimento económico, a isto e àquilo. Só nos lembramos daquilo que se passou há umas semanas e, depois, também há tudo o que está para trás…

 

Não tem a sensação de que existe em Portugal uma impunidade estrutural em relação a tudo? Na sua crónica no Expresso, Clara Ferreira Alves escrevia em tom irónico: "Não há rapazes maus." Não há?

Mas, em relação aos casos recentes, porque é que haveria de haver culpados de imediato? A primeira reacção depois de Pedrógão Grande foi: onde é que estão os culpados?! A primeira coisa que devemos perguntar é: como é que isto foi possível, e só depois é que talvez se encontrem culpados. O que eu digo em relação à actual circunstância, em que está no poder um partido pelo qual tenho evidente e pública simpatia – sou um socialista não filiado –, tê-lo-ia dito, e já o disse no passado, em relação a governos diferentes.

 

Provavelmente, daqui a muitos anos, ainda estaremos a perguntar pelos culpados. Há a sensação de uma certa impunidade em Portugal.

Existe, sim senhor, e quer que eu lhe diga quem são os principais responsáveis? Não é o poder político. É a justiça. Todo o sistema da justiça em Portugal é, neste momento, uma das forças bloqueadoras da sociedade no seu conjunto. Por que razão demorámos tantos anos a condenar Oliveira e Costa? Porque todo o sistema de justiça, todo o aparelho que existe para investigar, para apurar e produzir prova, não funciona ou funciona mal. É a própria justiça que bloqueia e nem sempre existe uma mão oculta por trás das coisas, às vezes são só as coisas.

 

Nem a mão do poder político e económico?

Mas o poder político e o económico fazem parte da vida da sociedade, e a justiça tem de saber viver com isso e, se não sabe viver, é disfuncional, e o país é disfuncional em grande parte por causa do seu sistema de justiça.

 

Nunca pensou em cargos governamentais?

Houve quem pensasse, mais do que uma vez, mas eu não. Não tenho essa vocação. Não tem que ver com não acreditar ou deixar de acreditar nas instituições, sou um democrata. Como cidadão, intervenho, mas nunca senti propriamente uma vocação para o exercício de cargos governamentais, não me sentiria bem, e eu gosto de trabalhar em coisas nas quais me sinta bem.

 

Sentiu-se bem na Expo’98? Há quem diga que é o pai da Expo.

Vão chamar pai a outro (risos). Sim, sentia-me bem aí, era um projecto que tinha nascido comigo e com outras pessoas.

 

Quase 20 anos depois, e com maior distanciamento, o que poderia ter corrido melhor?

Talvez não devesse dizer isto, mas é exactamente aquilo que acho, aquilo correu muito bem. Ponto. Houve coisas que podiam ter corrido melhor, houve chatices, acidentes de percurso, mas correu muito bem. Vou muito poucas vezes à Expo e, noutro dia, fui almoçar lá e observei os arbustos, os vulcões de água a funcionar, o Oceanário cheio de gente… Penso que é raro um acontecimento desta dimensão e com estas características, de uma exposição universal, produzir um "day after" tão positivo, como 20 anos depois se demonstra. O longo prazo é que é importante para medir o sucesso. Houve um conhecido cronista social que escreveu que, depois da Expo, esta zona seria um deserto. Um deserto?! Só vejo carros, gente, é uma zona viva da cidade. Agora, com certeza que deve haver coisas que não funcionaram tão bem.

 

Nomeadamente o Pavilhão de Portugal, recentemente entregue à Universidade de Lisboa pelo Estado. Esteve 20 anos ao abandono. O seu autor, Siza Vieira, chegou a dizer numa entrevista ao Negócios: "Em vez de se deixar o tempo demoli-lo, ao menos devia tomar-se a iniciativa para demolir e poupar trabalho ao tempo…"

E tem toda a razão. O que não correu bem na Expo foi o Pavilhão de Portugal, não o pavilhão em si, esse correu muito bem, era um ícone, mas o "day after" correu mal. Afinal, encontrou-se destino para tudo menos para o Pavilhão de Portugal.

 

O que é bastante simbólico.

O que é altamente simbólico. É como se tudo funcionasse, excepto Portugal… Foi algo que me desesperou já depois da Expo. Quando fui presidente da Parque Expo, fiz todas as tentativas possíveis para encontrar destino para o pavilhão. Agora, parece que foi cedido à Universidade de Lisboa, acho óptimo. Qualquer que seja o uso, abram as portas daquilo.

 

A Expo foi, sobretudo, uma operação urbanística?

Isso era algo que estava contido no decreto da Fundação. Mas a primeira missão era uma gigantesca campanha de marketing do país. E resultou. Um dos objectivos era elevar o patamar de turistas em Lisboa, fazer subir um milhão de turistas. Nunca mais se desceu daí.

 

Assistimos à recuperação de toda a zona ribeirinha e de bairros como Marvila, Chelas, Beato. Não receia a chamada gentrificação, o arredar das pessoas dos seus centros de vida, obrigando-as a deslocarem-se mais para a periferia?

Provavelmente vai haver uma requalificação urbana que levará, admito que sim, a uma substituição de algumas camadas que vivem lá, mas não vejo como obrigatório que se substitua inteiramente a população. Não se trata de erradicar populações e de as arredar dos sítios.

 

Mas, na prática, não é isso que está a acontecer em bairros como Alfama e outros?

Não sei, eu continuo a ver as pessoas a morarem lá.

 

Muitas casas de habitação são hoje "hostels" ou hotéis.

Mas o que é que quer fazer? As cidades são como as línguas, evoluem.

 

Trata-se de uma evolução?

Trata-se de uma evolução que, com certeza, terá aspectos menos positivos, mas que tem muitos aspectos positivos, como a melhoria da qualidade de vida das populações.

 

Lisboa perdeu meio milhão de habitantes nos anos 60 e agora é que estão preocupados com as pessoas que vão sair do centro! Está a voltar população a Lisboa! 

 

Das pessoas que ficam ou das que vão viver para lá. Muitas não podem ficar por causa das rendas elevadas. Há muita gente a sair do centro de Lisboa.

Oh, por amor de Deus, deixem-se dessa conversa! Desde os anos 60, Lisboa perdeu meio milhão de habitantes e agora é que estão preocupados com as pessoas que vão sair do centro. Está a voltar população a Lisboa! Cada vez vejo mais gente nova a viver nos bairros antigos, nas casas recuperadas. Durante décadas a fio, a cidade sofreu uma redução gigantesca de habitantes, foi terrível. E as pessoas saíam da cidade pela simples razão de que não tinham dinheiro para viver na cidade. Portanto, o motivo de as pessoas saírem do centro não está apenas nos preços de agora, já saíam por causa dos preços de antes. Foram viver para os dormitórios, muitas vezes não fazendo contas à gasolina e às horas perdidas no trânsito, mas cada um faz a sua opção, claro. Portanto, a saída da população do centro de Lisboa aconteceu muito antes do fenómeno recente do turismo. E garanto-lhe uma coisa: no próximo censo demográfico, Lisboa terá mais habitantes residentes do que no último. Há vinte anos, o espaço público era uma coisa que não existia em Lisboa, hoje existem vários. A qualidade de vida aumentou extraordinariamente. Dir­-me-á que os preços aumentaram. Bom, aumentaram agora, mas durante quatro ou cinco anos desceram brutalmente. Estou claramente optimista em relação à cidade. E em relação ao país também. Sou um optimista. Se não se é um optimista, não se consegue fazer coisas.

 

Foi sob o seu mandato, enquanto presidente do CCB, que o Museu Colecção Berardo foi inaugurado há dez anos no CCB. Preferia que o museu nunca tivesse existido?

(Silêncio) Hummm, se soubesse a forma, provavelmente preferiria, mas sempre defendi que a Colecção Berardo deveria ser recebida no CCB, em condições completamente diferentes daquelas em que aconteceu. Enfim, foi uma coisa decidida pelo poder político e nós tivemos de acomodar. A forma não me pareceu a mais correcta, sobretudo a atribuição da totalidade do centro de exposições do CCB à Colecção Berardo, que nem sequer precisava daquele espaço todo para ser exibida, como se viu.

 

Demitiu-se do cargo de presidente do Conselho de Fundadores da Fundação Berardo.

Sim, quando o museu foi inaugurado. Eu tinha sido designado pela então ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, para presidir ao Conselho de Fundadores da Fundação Berardo. Manifestei alguma incomodidade, mas ela insistiu muito e eu aceitei. No dia em que o museu abriu, a minha parte estava cumprida, não tinha mais nada a fazer ali nem tinha de arranjar dinheiro para o Museu Colecção Berardo.

 

Portugal deveria ter uma lista civil de cargos de confiança política do governo, isso evitaria escândalos e rasgar de vestes na praça pública.

 

Em 2012, não foi reconduzido no cargo pelo governo PSD. O partidarismo continua instalado em Portugal?

Não. Quando uma força política assume o poder através de eleições legítimas e livres, é natural que entenda trabalhar com uma maioria de funcionários da sua confiança política. Defendo publicamente há muitos anos que Portugal deveria ter uma lista civil de cargos de confiança política do governo, tal como existe nos Estados Unidos e no Reino Unido. E isso significa que as pessoas nesses cargos podem ser substituídas pelo governo que entra sem escândalo nem rasgar de vestes na praça pública. Não haveria esta espécie de exercício melodramático.

 

E a meritocracia ficaria assegurada?

Quando falo de uma lista civil, não falo das delegações regionais de saúde, como é óbvio, falo de cargos de direcção a partir de determinados níveis e, aí, a confiança política deve ser sobrepesada com o mérito das candidaturas. São cargos de substituição política, feitos de forma transparente. No meu caso do CCB, nunca encarei a não recondução como uma substituição política, precisamente porque tinha terminado o mandato. Foi nomeada uma pessoa (Vasco Graça Moura) em quem o governo tinha maior confiança política, coisa que é um elogio para mim, pois eu não queria ter a confiança política daquele governo já que eu também não tinha nenhuma espécie de confiança nele.

 

Está satisfeito com o actual Governo?

O caso português é exemplificativo de que, afinal, a bela unanimidade que o Norte defendia não é a única via possível para sair da crise. O discurso do Norte é totalizante enquanto pensamento económico e financeiro, e quem está no Sul vê-se obrigado a encontrar outras saídas, porque aquilo que funciona em países afluentes pode não funcionar em países de escassez. Achei extraordinário que o ministro alemão das Finanças tenha dito que o Mário Centeno era o CR7 do Eurogrupo. E achei extraordinário porque eu pensava que o senhor Schäuble não tinha sentido de humor e afinal tem um bocadinho. Isso é algo que deve ser visto a sorrir, mas também abre perspectivas interessantes – foi como se dissesse: afinal, aqueles desgraçados até têm um jogador como o Ronaldo e têm um ministro das Finanças que é um bocado o Ronaldo do Eurogrupo.

 

Mas isso parece um discurso condescendente.

Mas eles são sempre condescendentes. Os alemães estavam de rastos depois da II Guerra Mundial, e ainda havia líderes a produzir uns discursos extraordinários sobre a missão redentora da Alemanha quatro anos depois de terem sido arrasados. Os alemães serão sempre assim. Um dos grandes problemas da Europa é a Alemanha, porque de cada vez que a Alemanha cresce – e a Alemanha cresce sempre, qual fénix que renasce das próprias cinzas – torna-se, de facto, agressiva, hoje em dia já não sob a forma militarista, obviamente, mas do ponto de vista financeiro. Os alemães têm tendência para crescer muito e, quando crescem muito, tornam-se expansionistas, tornam-se uma potência agressiva, embora eles, provavelmente, não o queiram ser, mas a verdade é que são e querem impor aos outros as suas regras. Eles foram sempre marcadamente assim, eu conheço-os bem... Há uns 30 anos, trabalhei numa multinacional alemã. Um dia, estávamos em estado de euforia porque tínhamos tido um trimestre espectacular de vendas, quase o dobro do que estava planeado. Chega o administrador e disse: "Falhámos rotundamente. Falhámos no plano. Falhámos todos, e eu também sou responsável." Isto é alemão. Falhou a previsão, falhou o plano, falhou o procedimento.

 

Isso não é uma caricatura?

Dou-lhe a minha palavra de honra! Isto aconteceu. Nós ficámos boquiabertos.

 

E nós, no Sul, não quereremos impor a nossa visão?

Não, porque nós não temos uma visão comum, o Sul não tem uma visão comum, a plataforma comum no Sul é dizer que há diversas vias para atingir resultados, e eu acho que isso é verdade, acho que nunca existe só uma via, há sempre a possibilidade de várias vias.

 

Foi recentemente reconduzido como director executivo da Associação Música, Educação e Cultura (AMEC/Metropolitana). Já alcançaram o equilíbrio financeiro?

Sim e não. O sim tem que ver com o equilíbrio de exploração. Todos os anos, esta casa produz um resultado positivo na ordem dos 150 mil euros. Ou seja, o que ganhamos todos os anos dá para pagar aquilo que gastamos e ainda liberta 150 mil euros. E não, ainda não atingimos o equilíbrio financeiro mas, neste momento, já temos menos de dois milhões de euros de dívidas – quando entrei tínhamos cerca de quatro milhões –, e a maior parte delas são dívidas antigas à Segurança Social e ao Fisco, que estão tituladas por um acordo que se prolonga até 2027. Até então, desde que paguemos todos os meses as prestações…   

 

Qual o orçamento anual?

Cerca de quatro milhões, 60% vêm da Câmara Municipal de Lisboa e do Governo, 40% vêm das receitas próprias. Tentarei, no próximo ano, aumentar um bocadinho as receitas próprias, enquanto entidade privada que somos.

 

Eu tenho de ter uma ocupação "hands on", e isso é o que me liberta a cabeça para escrever.

 

Sente que a Orquestra Metropolitana de Lisboa refloresceu? 

Penso que a Orquestra está bastante bem. Quando eu e o director artístico, Pedro Amaral, chegámos cá, em 2013, a situação era muito instável. Estavam em vigor cortes de 20% nos salários dos funcionários, hoje esse corte é da ordem dos 5% e estamos, progressivamente, a repor os rendimentos, e isso naturalmente melhora o ambiente em toda a instituição. Por outro lado, o director artístico segue uma política de responsabilização e de estabilização da Orquestra. Havia muitos postos que estavam sem titular permanente, o que criava instabilidade. Hoje temos 32 músicos permanentes e trabalham aqui, no total, 140 pessoas e temos mais de 330 alunos. E agora existem cada vez mais entidades a procurar os serviços da Orquestra. Quando entrámos, andámos quase de malinha na mão a vender a Metropolitana, hoje já se verifica o movimento contrário. Assinámos recentemente um protocolo de colaboração com o Coro e a Orquestra da Rádio Televisão Espanhola (RTVE).

 

E vai tendo tempo para escrever?

Vou sempre escrevendo. No outro dia, vi uma entrevista muito interessante do Francisco Pedreira, que ganhou o prémio de ensaio (Prémio Imprensa Nacional­-Casa da Moeda/Vasco Graça Moura) com um livro magnífico, "Uma Aproximação à Estranheza". Perguntavam-lhe se ele gostava de se profissionalizar e ele dizia: que horror, eu jamais poderia ser um escritor profissional, a escrita é para escrever no intervalo de uma ocupação profissional. E eu achei isto brilhante. Comigo acontece a mesma coisa, eu seria incapaz de ser um escritor profissional, de estar em casa de manhã à noite a escrever. Eu tenho de ter uma ocupação "hands on", e isso é o que me liberta a cabeça para escrever. E depois escrevo quando posso. A escrita, para mim, é um é um prazer tão extraordinário que não pode ser uma obrigação.
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