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“O Jogo de Escondidas”, o último livro de Fernando Sobral

“O Jogo das Escondidas” é o livro que Fernando Sobral já tinha revisto, antes da sua morte, a 13 de maio de 2022. Praticamente um ano depois, a 11 de maio, chega às livrarias, editado pela Quetzal. Esta é um pré-publicação de um livro que tem Macau como o centro da trama.
Celso Filipe e Vítor Mota - Fotografia 08 de Maio de 2023 às 17:02

Deve afirmar-se que o céu é, sem dúvida, corruptível.

Cristoforo Borri

Collecta Astronomica, 1631

 

 

Eu vi a luz em um país perdido

A minha alma é lânguida e inerme

Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!

No chão sumir-se, como faz um verme...

Camilo Pessanha

Clepsydra

Macau, 1923

 

 

1.

  

Benedito Augusto naufragou duas vezes. E duas vezes sobreviveu. Por isso gosta de lembrar, a quem o escuta, que há uma velha lenda dos marinheiros que diz que, ao terceiro naufrágio, se alcança a imortalidade. Apesar de acreditar que tal possa ser possível, nunca o tentou comprovar. Hoje prefere a terra ao mar, Macau em vez dos mares do sul da China. De resto, em Benedito Augusto nada é o que parece. Esse não é o seu verdadeiro nome. O de nascimento, de que não há registo, ficou perdido em Lisboa. Desde que apareceu em Macau que é conhecido como padre Augusto, mas nada garante que, pelo caminho, enquanto percorreu os mares e as terras da Ásia antes de chegar ali, à Cidade do Santo Nome de Deus, não teve outros nomes e outras vidas.

 

O tenente Félix Amoroso sondou-o com o olhar, intrigado. De cabelo negro, com uma pequena barba onde já despontavam alguns pêlos brancos, o padre Augusto vestia uma cabaia de ganga escura. A sua face era morena, com grandes olheiras, que salientavam ainda mais uns olhos negros incandescentes. Era um mistério. Mas, mesmo assim, era o mais precioso agente do tenente. Falava cantonês, inglês, francês e, claro, português. Como pretenso padre, jesuíta segundo dizia, penetrava em lugares interditos a outros ocidentais. Ouvia atrás de portas que se fechavam a sete chaves quando alguém as tentava ultrapassar. Sabia perscrutar a alma dos outros como ninguém. Defendia-se, dizendo que, sendo o Diabo a origem de todos os males, o seu objectivo era vencê-lo. O Diabo tentava todos os seres humanos. Por isso, saber o que cada um queria não era um pecado. Saber os segredos dos que queriam o Mal era uma acção ao serviço de Deus. Mesmo que pago pelo vil metal que corrompia os homens. Amoroso não sabia se a argumentação do padre era verdadeira ou falsa. Mas isso era, para já, indiferente. Ele era-lhe útil.

 

Benedito Augusto levou aos lábios o copo de cerveja que tinha à sua frente. Depois de, com evidente prazer, saciar a sede, disse, sorrindo:

— Não sou ninguém, meu caro tenente. Posso ser toda a gente. Gosto de ser invisível. Como um anjo disfarçado no reino das trevas.

— Ou um diabinho mascarado no mundo dos que se julgam anjos.

— Se isso o conforta...

 

Félix Amoroso gostava que ele continuasse a ser invisível. Olhou à volta. Estavam numa espécie de taberna muito escura onde apenas se viam sombras recortadas pela luz mortiça de umas lâmpadas de óleo que não eram limpas há muito tempo. Ninguém se importava. Os que ali estavam queriam que as suas faces passassem despercebidas. Marinheiros com tatuagens, com marcas e rugas que eram fruto de passados impossíveis de descobrir, trabalhadores das docas, piratas. Homens que tinham tentado descobrir o paraíso e que tinham escorregado no seu caminho. Por desejo dos outros. Ou por culpa própria. A vida era um contínuo labirinto. E nem todos queriam descobrir a saída dele.

 

Ali, naquele pequeno local decrépito, sem nome e identificado apenas com um número na porta, junto ao Porto Interior, desenhavam-se traições e conspirações. Marinheiros sôfregos de terra firme vinham gastar o dinheiro das suas aventuras legais ou ilegais. Ou procurar uma mulher, antes de voltarem ao mar. Mas todos falavam baixo. Um grupo de homens chineses estava sentado num recanto. As suas faces dificilmente eram visíveis. Na mesa, que ocupavam, uma chama de uma vela movia-se com a sua respiração. Bebiam e comiam sopa de fitas, enquanto pareciam esperar alguém. Também ali estavam alguns homens solitários, quase todos ocidentais, perdidos nos seus pensamentos e alheados da vida. O cheiro de fritos contaminava o ambiente, tornando-o ainda mais quente. Mas ninguém limpava o suor que se ia acumulando nos corpos e que lhes dava um ar encardido. A sujidade não incomodava ninguém.

 

Era de uma conspiração que Benedito Augusto queria falar ao tenente Amoroso. Escutara-a ali. Às vezes, o tenente tinha a sensação que o padre Augusto tinha um tom ressentido. Muitas vezes sarcástico, mas outras parecia alguém que se queria vingar. Dos outros, de si próprio, do que vira e do que algures fizera ou deixara por fazer. Como ele, sabia que não havia inocência no mundo. Como quase todos os portugueses que tinham, ao longo dos séculos, perdido demasiado tempo e energia a sobreviver. Ele próprio o sabia. Sobrevivera a La Lys, durante a Primeira Guerra Mundial, antes de rumar a Macau. Escondido numa trincheira, queimado pelo pó enquanto tentava evitar as balas. O tenente tinha um perfil esguio, quase duro, mas aparentava uma doçura e elegância no olhar e na sua forma de falar e sorrir. O seu bigode estava bem aparado. A cor morena ganhara contornos dourados por causa do sol. Apresentava sinais de fadiga e falta de horas de sono nos seus olhos amendoados. Apesar de habituado à linguagem das armas, movia as mãos com delicadeza. Talvez por isso, quer Benedito Augusto, quer Félix Amoroso, embora parecessem vir de mundos diferentes, tinham tanto em comum. A sua semelhança aproximara-os. Ou um segredo que, receosos,  partilhavam.

— Meu caro Amoroso. Eram dois homens. Um, chinês. O outro deveria ser europeu ou americano. Falavam inglês, mas o ocidental, apesar de ser loiro, tinha um sotaque estranho. Era de um país europeu, por certo. Nunca o tinha visto. Conversavam em sussurro, num canto. Eu, por acaso, estava na mesa mais próxima, com um pirata que quer reformar-se. Uma utopia que nunca conseguirá concretizar. Agora os outros dois discutiam uma coisa mais terrena.

 

Falavam de Macau e da sua venda.

— Da venda de Macau?

— Sim, segundo o ocidental, Portugal vai vender Macau à Alemanha. Pelos vistos ainda é um segredo, mas vai realizar-se brevemente. Parecia preocupado em arranjar dinheiro para comprar a simpatia de quem é importante em Macau para que tudo corra sem problemas aqui, depois do Governo de Lisboa anunciar a venda. Talvez fosse alemão...

Amoroso franziu a testa. Nunca tinha ouvido nada sobre esse assunto. 

— E não soubeste mais nada? De onde vinha o chinês?

— Ele costuma estar por aqui. Tem um barco. Acho que, ou é pirata ou, então, faz contrabando. De arroz, de ópio, de seda. De mulheres. De tudo. Mas deve dar-se bem com as autoridades e com as tríades, porque não parece ter receio de nada, segundo me disseram depois. É preciso que existam piratas para que se justifiquem gastos e custos de muita gente, da administração às empresas de seguros marítimos, não é verdade?

— Achas que isso é assim?

Benedito Augusto fez um esgar:

— Hoje é difícil ser puro e inocente.

— Como pretenso padre, deverias acreditar nisso.

— Sou padre. Formei-me num colégio jesuíta. Conheci a sua história. Aprendi muito com eles. Sabe como foi, já lhe contei, tenente. Tive de fugir de Portugal, quando chegou a República. Queriam enforcar os padres como eu, nos candeeiros. Acabei por vir parar aqui. E o tenente, porque veio para Macau?

— Para descansar da guerra, meu caro. Dos pesadelos e dos fantasmas.

— E encontrou paz aqui?

— É mais fácil falar com os deuses aqui do que em Lisboa.

Félix Amoroso encolheu os ombros. Não lhe agradava a conversa. Fungou:

— O que me dizes é muito vago. Que posso eu investigar com isso?

— Saber se há fogo no meio do fumo, não? Descobrir quem é o ocidental. Deve andar por aí. Quanto ao resto eu acabarei por saber.

O tenente tirou um envelope do bolso e passou-o discretamente para as mãos de Benedito Augusto.

— Está aí tudo o que te é devido.

— Confio em si.

Colocou o envelope no interior da cabaia. E voltou a dar um gole na cerveja. Amoroso sentiu-se, por momentos, incomodado. O chão estava muito sujo. Tal como a mesa e os bancos onde estavam sentados. Este era um local de trânsito, entre o mar e terra firme. Os mais endinheirados, depois, deveriam ir para os bordéis, ou para casas de ópio e de jogo na Rua da Felicidade. Onde as portas, como o desejo, eram vermelhas.

 

Diziam que esta era a cidade dos pecados. Como se o resto do mundo fosse diferente. Era apenas mais um porto onde alguns se escondiam do passado e outros se refugiavam das incertezas do mar. Sentiu-se esgotado, mas estranhamente desperto e sem sono. Lá fora, a cidade dormia tranquilamente. Ouviu a voz do padre Augusto:

— Em Macau não deveríamos olhar para o sol. Cega-nos com sonhos irrealizáveis.

A sua voz era calma e segura. Reconfortante, para quem não o conhecia nem dele poderia desconfiar. O tenente respondeu:

— Deus, às vezes, está ausente em parte incerta.

Era o que acontecia ali, onde apesar da presença das força de segurança portuguesas, as sociedades secretas controlavam as ruas e os becos.

— Deus deixa-nos ver. E decidir. De dia, vemos o que os outros nos querem deixar ver. De noite, podemos vislumbrar o que devemos ver. As sombras iluminam mais do que a luz.

 

Amoroso sorriu com as palavras do padre Augusto, um homem tão sombrio como a escuridão da noite. Sentia que ele queria destruir o mundo que conheciam, para que fosse possível construir, a partir das suas ruínas, um outro. Queria uma nova ordem que restabelecesse o equilíbrio entre o céu e o inferno. Como se tal fosse possível. Augusto voltou a falar:

— Talvez seja o momento de mudarmos tudo. Não podemos ver para lá do horizonte, mas sinto que algo se aproxima. E não é bom.

O tenente Amoroso pensou, por momentos, na chinesa Ding Ling. Ela poderia ser um futuro bom, se acreditasse que isso ainda era possível. Por isso não escutou as palavras do padre Augusto, que soavam a despedida:

— Lembra-se do jogo das escondidas, tenente? Em crianças, contávamos até cem, com os olhos fechados, antes de podermos ir à procura dos que se tinham ido esconder. Trouxemos esse jogo de Portugal para Macau. E continua-mos a jogá-lo aqui. Mas, às vezes, fechamos os olhos e não fazemos intenção de descobrir quem está escondido. E nós escondemo-nos tão bem que temos medo de voltar a aparecer.

2.


Os olhos de Ding Ling eram negros. Tão escuros como a cor do seu cabelo, comprido, mas enrolado e travado por agulhas vermelhas. O cheongsam branco, com dragões verdes nas mangas, que vestia, ajustava-se perfeitamente ao atraente corpo da chinesa. Nos dedos anelares cintilavam anéis de jade verde e de ouro com esmeraldas. Caminhou até junto do tenente Félix Amoroso, por entre a nuvem de fumo que se movia muito devagar dentro da sala. A luz das lâmpadas do candeeiros de gás era ténue, mas mesmo assim era visível o brilho hipnótico dos seus olhos. Algo que Amoroso bem conhecia. A sua voz era aveludada e acolhedora:

— Deseja um chá, tenente?

— Se tal for possível.

Ding Ling aproximou-se de uma jovem chinesa, a quem fez o pedido. Esta retirou-se sem falar e sem olhar para o tenente.

— Os seus empregados são todos assim, silenciosos como gatos, menina Ling?

— Gosto do silêncio. Traz-me conforto e segurança.

Em grande parte da Noite Tranquila, a discreta casa de jogo e de ópio de Ding Ling, na Calçada das Verdades, quase não se escutava o ruído das conversas. Quem procurava a tranquilidade tinha de a saber encontrar. Os seus clientes eram selectos. Tal como as cortesãs que deslizavam entre mesas, sedutoras. E isso tinha um preço. "Porque tudo na vida tem um preço", dizia, sem emoção visível, Ding Ling. Voltou a cabeça e deparou-se com uma jovem chinesa esguia, vestida com uma cabaia de brocado que tinha aberturas laterais que permitiam ver as suas atraentes coxas. Ela debruçara-se sobre um chinês gordo que estava concentrado a jogar fantan. Fumava charutos filipinos, tal com os outros jogadores. Ele não ligou à chinesa, mas ela deixou-se ali ficar, com uma mão no ombro direito dele. A dar-lhe sorte. Porque desta também dependia o resto da sua noite. Amoroso sentiu o odor do fumo do ópio que vinha do piso superior e que se misturava com o do tabaco. Ding Ling fez sinal para subirem. Ele seguiu-a até a uma pequena sala, onde se sentaram junto a uma mesa de madeira de cerejeira.

— Que o traz desta vez a esta humilde casa, tenente?

— Julgo que o sabe, menina Ling. A morte de João Carlos da Silva, um dos secretários do Governo, que apareceu morto esta manhã perto da porta deste estabelecimento.

— Um trágico acontecimento, tenente.

— Ele era um frequentador assíduo da Noite Tranquila, não era?

— É verdade, tenente. Esteve aqui ontem à noite, saiu daqui vivo, e foi encontrado morto na calçada, a uns metros daqui. Assassinado com golpes de faca. Um dos meus funcionários chamou a polícia. Nada tenho a esconder das autoridades portuguesas. E todos temos a ganhar se tratarmos do assunto discretamente.

João Carlos da Silva era um secretário do gabinete do novo governador de Macau, Rodrigo José Rodrigues, que fora nomeado em Janeiro pelo Governo português. Silva residia há muitos anos em Macau e era conhecido pela sua paixão pelo jogo e pelas cortesãs que eram mestres na arte da sedução na casa dos prazeres de Ding Ling. Era um homem frágil e inseguro, segundo se dizia. Mas muito competente no trabalho. A mulher, depois de poucos meses em Macau, deixara-o e regressara a Lisboa. Levara a filha de ambos, ainda criança. Ele ficara e nunca mais conseguira criar uma família. E isso era um ponto fraco para quem estava no centro do poder, como Amoroso sabia.

 

Independentemente da investigação da polícia, o tenente decidira ir até a um local que conhecia bem. Essa era a sua missão em Macau: ver o que os outros não viam e alertar o comandante militar da ilha da Taipa ou o Governador. Ouviu a voz de Ding Ling:

— O senhor Silva era um homem muito querido aqui. Um excelente cliente. Ninguém desejaria a sua morte.

Amoroso olhou para ela e sorriu. Ele próprio era um bom cliente daquele local.

— Claro.

Tentou manter alguma frieza, mas sabia as suas fraquezas quando estava perto de Ding Ling. O tom familiar desta mostrou que conhecia muito bem a fragilidade de Amoroso:

— Achas que a morte dele foi um mero azar do destino ou tem alguma implicação maior?

— O senhor Silva tinha uma posição sensível na administração portuguesa de Macau. Por isso todos os cenários são possíveis.

— E pensas que algum de nós poderá ter a ver com a sua morte?

— Querida Ling, tenho de fazer uma escolha entre ti e a razão da morte dele? Ou entre ti e a menina que estava, eventualmente, com ele?

— Não te peço tanto. Embora muitas vezes na vida tenhamos de fazer escolhas difíceis ou que nos parecem impossíveis.

Amoroso sentiu o aroma do chá, que entretanto tinha sido colocado na mesa. Era reconfortante, àquela hora. Durante o dia poupava o corpo ao álcool. E a noite ainda não tinha chegado.

— Quem era a menina com que ele estava ontem à noite?

— Com a Li Bei. Sabes quem é. Temos estado lado a lado desde pequenas. Caminhámos juntas. Navegámos juntas. Matámos juntas. Partilhámos coisas que não imaginas. Dormi com ela durante anos.

O seu olhar denotou prazer ao dizer isso. Só para ver a reacção de surpresa ou ciúme do tenente.

— Ficarias admirado com as mudanças que uma cabeça pode sentir depois de passar uns dias na cama com ela. Vim de Xangai para aqui com ela. É como se fosse minha irmã.

Ding Ling, conscientemente, despertava-lhe o desejo. Ele nunca tinha estado na cama com Li Bei. E não sabia que elas tinham essa relação tão forte. Afinal não a conhecia tão bem como julgava. Amoroso tentou afastar da memória as suas noites com a chinesa.

— Diz-me, ninguém se aproximou do reservado do senhor Silva ontem à noite?

— A Li Bei tratou do seu conforto. Como sempre fez. Ele saiu daqui, antes do sol nascer. Ninguém ouviu nada, até se encontrar o corpo caído na rua. Mas diz-me, querido tenente, porquê esse interesse? Desconfias de algo?

— O senhor Silva tinha informações que poucas pessoas têm em Macau. Temos um novo Governador. Esta morte não poderia ser mais inoportuna.

Ding Ling fechou os olhos. Disse apenas:

— É verdade.

Ela tinha, para além daquela casa de prazeres, uma frota de juncos e lorchas e um centro de distribuição no Porto Interior, onde guardava as mercadorias, incluindo ópio, que vinham de várias cidades da Ásia. Herdara todo esse negócio do seu tio, morto em circunstâncias trágicas, num caso que um ano antes fora muito comentado em Macau. Desde então o negócio prosperara. Falava-se que os seus interesses se tinham alargado ao contrabando de ópio e que ela tinha agora ligações à tríade do Bando Verde. Tudo rumores sem confirmação. Mas Macau era uma cidade pequena. Reinava a inveja. E em locais assim os segredos nunca poderiam ser bem guardados. Quando a questionara sobre isso, Ding Ling respondera de forma impassível: "Uma cidade portuária precisa do comércio para sobreviver". Nada poderia ser mais verdade. Amoroso ouviu outra vez a voz da chinesa:

— Quando cheguei a Macau só trazia duas coisas, a tristeza e a necessidade de encontrar uma via para voltar a reconciliar-me com a vida. Na verdade, tudo é um pouco assim. Temos de estar preparados para seguir em frente. Vês isso quando contemplas a natureza. E a sua reacção às agressões. A força da vida é tremenda, é algo perfeitamente assombroso.

— Tu és uma força da natureza.

—  Não seria sem a tua ajuda.

Ding Ling não precisava de dizer mais nada. O segredo que ambos compartilhavam não poderia ser dito em voz alta. Era uma história que não deveria ser confidenciada a outras almas. Talvez por isso Amoroso não conseguisse viver sem vir ter com ela. A vida seria diferente se não tivesse vontade de sentir os espinhos das rosas mais belas e misteriosas. Ding Ling aproximou-se e roçou os lábios pelo pescoço de Félix Amoroso. Ficou assim durante algum tempo, antes de dizer:

— Que desejas mais, tenente?

Ele não conseguiu responder. O corpo quente de Ding Ling colara-se ao dele e aprisionara todos os seus movimentos e pensamentos. Ela colocou a sua mão na dele e puxou-o para uma pequena porta, escondida atrás de um biombo de laca preto com imagens de uma batalha, posto no canto da sala. Entraram num quarto muito pequeno, quase só ocupado por duas camas de pau preto, divididas por uma mesa comprida em cima da qual estavam dois cachimbos de ópio e outros utensílios.

 

Ding Ling tirou-lhe as roupas e fez com que o tenente se deitasse numa das camas. Depois também despiu o seu cheongsam. Sentou-se junto a Amoroso e, a seguir, soergueu-se para lhe beijar os lábios e, depois, todo o corpo. Devagarinho, colocou-se sobre ele e as suas mãos foram acariciando o seu tronco. O tenente sentiu o corpo da chinesa, fechou os olhos e abandonou-se. Mais tarde, o ópio trouxe-lhe o resto do repouso que tanto procurava. Só se levantou já os raios de sol irrompiam por Macau. Estava sozinho. A cama estava vazia. Fora um sonho maravilhoso.

3.

 

Somos o que não somos. Tal como as coisas não são o que parecem. O tenente Félix Amoroso sabia isso, porque a sua vida mais recente era o resultado desse enigma eterno. Mas não era isso que o incomodava agora, quando estava prestes a entrar no edifício da Avenida Almeida Ribeiro onde se situava o escritório de Joaquim José Palha, comerciante de vinhos e facilitador de negócios. Este tinha outras aptidões muito elogiadas, como ser uma voz escutada junto de alguns dos mais importantes comerciantes da comunidade chinesa. Alguns deles dominavam o mundo do jogo.

 

Palha era um homem ambicioso. Alguém tinha dito que o caminho até ao cimo conduz-nos mais para baixo, mas até agora ele tinha estado imune a esse destino. Amoroso subiu até ao primeiro andar, onde uma jovem secretária chinesa lhe abriu a porta da sala onde Palha o esperava. Este estava sentado, atrás de uma grande mesa de madeira. Nas paredes viam-se prateleiras com livros diversos, muitos deles de Direito e de História. Palha parecia inquieto. Os seus olhos pequenos moviam-se lentamente numa face redonda. Teria perto de 50 anos e uma estrutura sólida. Tinha uma cerrada barba grisalha, que condizia com a cor do cabelo, e vestia um fato de linho claro, de corte perfeito. Com a mão esquerda, brincava com uma ampulheta. Quando viu o tenente, colocou-a na mesa, e a areia fina que estava no compartimento superior começou a cair no inferior. Como que a mostrar que o tempo tinha começado a contar. Olhou para Amoroso com ar inquiridor. Disse, afavelmente:

— Bem-vindo tenente Amoroso. Sente-se, por favor. Sei que, como eu, é um homem com o tempo contado. Por isso não o demorarei.

— Quando me pediu para vir aqui fiquei com dúvidas sobre o que desejava. Não frequentamos os mesmos círculos. Nem temos interesses coincidentes.

— Não estaria tão certo, tenente. Macau é uma cidade pequena. Todos se encontram. E todos dizem mal dos outros assim que estes viram as costas. Não é diferente em Portugal. Somos mestres na arte do fingimento e da inveja. Imagino que sabe isso. Mas estamos condenados a viver uns com os outros. E a garantir que Macau sobrevive. Por isso os nossos interesses acabam por ser mais ou menos comuns, não lhe parece?

 

Para além de comerciante, Palha era também membro do Leal Senado, eleito pelo Centro Republicano Eleitoral, grupo político criado há poucos anos. A política, em Macau, pouco ou nada tinha a ver com o que se passava em Lisboa. A capital de Portugal estava longe e o seu frágil braço apenas era visível nas decisões do Governador. Lisboa não conhecia a realidade de Macau nem os interesses e necessidades de quem lá vivia. A cidade era um ponto pequeno e longínquo no mapa do Império português.

 

Palha era um homem poderoso. A sua voz era dominadora. Os seus olhos, frios e cintilantes, contrastavam com um sorriso terno mas firme, que sublinhavam as palavras.

— Vou ser franco e directo consigo, tenente. Está em Macau desde quando? 1919, 1920?

— 1920. Desde há três anos.

— É verdade. Nada é já uma surpresa para si. Já percebeu que, de um momento para o outro, tudo o que construímos pode ruir. Lisboa não sabe e não quer saber. E não percebe nada. Porque, para além da pequena política pacóvia onde se vai afogando, também está mais preocupada em sobreviver. Nada que admire um português. Somos todos náufragos em busca de uma bóia. E à espera de uma sereia.

Deu uma risada.

— Percebeu o que se passou neste último ano? A nossa situação é muito débil. Portugal já não é uma potência que imponha respeito.

Amoroso recordava-se. Macau estivera à beira do precipício. E ainda não estava salva. Não caíra porque a sua capacidade de sobrevivência era semelhante, ou mesmo superior, à de Portugal. Quando estava com um pé no abismo, um milagre, um acontecimento inesperado ou um homem providencial mudava o sentido do vento. Até ao início de 1923, Macau fora palco de uma sublevação sem precedentes. Que tivera a ver com a frustrada tentativa do general Ch’en Chiu Ming eliminar Sun Yat-sen. A agente de Ch’en, uma mulher irrascível chamada Wong Pik-wan, viera para Macau para incendiar os ânimos. Nessa altura, as forças nacionalistas mais radicais proclamavam que a China deveria reaver rapidamente a soberania sobre os territórios ocupados pelas potências estrangeiras. Macau era um alvo fácil. Todos temiam um ataque à cidade, a partir da China continental. Fora mesmo, nesses meses, criado um Corpo de Voluntários da Defesa Civil. A confusão era total. O então governador, Henrique Correia da Silva, estava em Hong Kong, de regresso a Lisboa.

 

Depois de um incidente na Rua da Felicidade, em finais de Maio de 1922, entre um soldado do contingente moçambicano e uma cantadeira, a indignação popular habilmente dirigida por Wong desembocara no Largo do Chip Seng, com os soldados portugueses cercados. As espingardas Mauser acabaram por fazer o resto e dezenas de manifestantes foram mortos. O próprio Sun Yat-sen, que sempre recebera o apoio dos portugueses republicanos em Macau, e por isso tinha o coração dividido, esteve prestes a apoiar os revoltosos depois do massacre. Mas uma tentativa de assassínio na sua própria sede de Governo, fez com que, na fuga de Cantão, Macau surgisse como uma boa alternativa de refúgio.

 

Uma deslocação que poderia oferecer a paz que Macau necessitava. Negociações entre as autoridades portuguesas e os representantes de Sun tinham-se iniciado e fora mesmo oferecido ao fundador da República chinesa um empréstimo substancial para salvar as falidas finanças do Kuomitang. Alguém, em Hong Kong, acabou por denunciar a tentativa de acordo e isso foi o fim das ilusões. Mas as autoridades portuguesas tinham ganho tempo e a sublevação esmorecera. Wong ainda se movera na cidade flutuante de juncos do Porto Interior e no Bazar, mas, perdida a aposta, regressara a Cantão. Palha interrompeu as recordações de Amoroso.

— Por essa altura, tomou conta do seu novo posto?

— Mais ou menos. O chefe da polícia secreta foi demitido por ser, no mínimo, conivente com as acções da senhora Wong. Mas eu não sou o novo chefe da polícia secreta.

— Eu sei. Mas é a sua sombra. Só responde perante o Governador e o chefe militar de Macau, não é verdade?

Amoroso não disse nada. Olhou para a ampulheta de Palha. A areia fina continuava a cair.

— E a senhora Wong, sabem dela?

— Sun Yat-sen retomou o controle de Cantão. Ela está em fuga. Não deve ter muito futuro.

Em 1923, Macau recuperara a normalidade. Os portugueses tinham voltado a jogar ténis, a frequentar as matinés dançantes do Grémio Militar e do Clube de Macau, a fazer piqueniques na ilha da Taipa ou junto à gruta de Camões e, os mais entediados, jogavam bridge. É certo que as tríades dominavam, como sempre, os negócios subterrâneos. Na cidade flutuante do Porto Interior ninguém conseguia impor a lei. Os piratas cirandavam, à vontade, nas águas circundantes. Mas o jogo estava a regressar às regras não escritas e observadas por todos. Para sobreviver era preciso não ouvir, não ver e, sobretudo, não actuar. Havia uma aparência de sossego como há mais de um ano não existia.

Palha acariciou os braços da firme cadeira de madeira. Cerejeira, segundo parecia.

— Sabe de onde veio esta cadeira, tenente?

— Não imagino.

— Pertenceu a um director da VOC, a Companhia das Índias Holandesas e, depois, a um director da East India Company. Tem cerca de 150 anos. Sempre foi muito cuidada. É um símbolo de poder. Esta madeira influencia-nos na forma como o exercemos.

O seu olhar era malicioso. Continuou:

— Temos um novo governador, o doutor Rodrigo Rodrigues. Ele vai precisar de homens que o ajudem a compreender o mundo em que vivemos. Homens como ele precisam de outros como o tenente. Que os aconselhem bem para os protegerem do mundo. Acha que essa é a sua missão, tenente?

Palha parou um pouco. Virou a ampulheta, mostrando que tinha tempo. Continuou a falar:

— Eu acredito nesta cidade. E se há alguém capaz de a tornar melhor é você. Disseram-me uma vez que a força de um homem vê-se no momento em que ele se confronta consigo próprio. Em que ouve vozes na sua cabeça, argumentando que está certo, porque alguém está errado. Saber a diferença, nesse momento, é o que faz um oficial do exército. O que faz um homem. Sinto que sabe fazer essa escolha. A certa, é claro.

Olhou fixamente para o tenente. Este sabia o que Palha estava a querer dizer. Mais do que aconselhar o novo governador, queria que o convencesse das ideias do comerciante para o território.

— Eu sei que será o homem certo para essa missão. Como foi capaz de fazer tudo para proteger a sua amiga Ding Ling durante os tumultos do ano passado.

O seu olhar era amistoso, mas as palavras soavam como lâminas. E o tenente sentiu um arrepio na espinha. Porque sabia o que Palha queria que ele recordasse. Quando saiu do escritório e chegou à rua, a brisa quente lembrou-o que estava em Macau. Cidade de enigmas e um enorme tabuleiro de jogos diferentes.

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