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Morreu Maria Velho da Costa. O perigo, a força da mulher e o cume de fulgor da literatura

A escritora portuguesa Maria Velho da Costa, Prémio Camões em 2002, morreu este sábado, aos 81 anos, disse à agência Lusa a realizadora Margarida Gil, amiga da família. Debilitada, mas lúcida, a escritora morreu de forma súbita em sua casa, em Lisboa.

24 de Maio de 2020 às 12:33
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A escritora Maria Velho da Costa, que morreu neste sábado, em Lisboa, aos 81 anos, sabia que todos os regimes totalitários consideram "perigosa" a literatura. Afirmou-o em 2013, quando recebeu o Prémio Vida Literária, da Associação Portuguesa de Escritores, e assumiu esse perigo, desde o início, desde a primeira obra, desde os contos de "Lugar Comum" (1966), num trabalho constante sobre "a palavra e o seu cume de fulgor", com "um virtuosismo exemplar", como o definiu o ensaísta Eduardo Lourenço.

Maria Velho da Costa representa "a inovação no domínio da construção romanesca, no experimentalismo e na interrogação do poder fundador da fala", disse o júri do Prémio Camões, em 2002, quando lhe atribuiu o galardão. Representa a capacidade de trabalhar a linguagem, de desafiar modelos dominantes, de afirmar a força da mulher. "A literatura e a poesia, são um perigo" para os regimes totalitários, afirmou, quando recebeu o Prémio Vida Literária. "Por isso [esses regimes] queimam, ignoram e analfabetizam. O que vem dar à mesma atrofia do espírito, mais pobreza na pobreza", acrescentou.

Foi uma das autoras das "Novas Cartas Portuguesas", obra que abalou a ditadura, caída com o 25 de Abril de 1974, ao pôr na primeira linha o debate sobre o feminismo, a liberdade de valores para as mulheres, numa 'correspondência' partilhada com Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta, desde então conhecidas pelas "Três Marias".

Publicada em abril de 1972, pela Editorial Estúdios Cor, sob a direção literária de Natália Correia, a obra partia da forma do romance epistolar do século XVII "Cartas Portuguesas", supostamente escritas por Mariana Alcoforado, para construir um novo discurso, numa oposição aberta ao Estado Novo, desafiando a repressão, a censura e os seus costumes.

Considerada uma obra de "conteúdo insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública", pelo regime, o processo judicial não tardou. Destruiu a primeira edição, levou as autoras à PIDE, a tribunal, proibiu-as de sair do país e deu-lhes a dimensão internacional do escândalo. "Em boa verdade vos digo: que continuamos sós, mas menos desamparadas", escreveram as "Três Marias" no termo da penúltima carta.

"A literatura é por certo uma arte, um ofício, com o seu tempo de aprendizagem, treino, de escuta incansável, mas também a palavra no tempo, na história, no apelo do entusiasmo do que pode ser lido ou ouvido, a busca da beleza ou da exatidão ou da graça do sentir", disse Maria Velho da Costa, no discurso que acompanhou a entrega do Prémio Vida Literária, em 2013.

A sua bibliografia tem início em 1966 com o livro de contos "Lugar Comum" e termina quase 60 anos mais tarde, com outro livro de histórias curtas, "O Amante do Crato", publicado em 2012, com ilustrações de Ilda David. Entre um e o outro, somam-se cerca de duas dezenas de títulos e uma obra em que o escritor Urbano Tavres Rodrigues relçou "a escrita desafiante, criadora, irónica e lírica (...), o gosto pelo vocábulo raro, pela construção insólita, pela intenção verbal".

Ficcionista, ensaísta e dramaturga, Maria de Fátima de Bivar Moreira de Brito Velho da Costa, de nome completo, nasceu a 26 de junho de 1938, na capital portuguesa. Licenciada em Filologia Germânica pela Universidade de Lisboa, tinha o curso do Grupo-Análise da Sociedade Portuguesa de Neurologia e Psiquiatria.

Foi adjunta do secretário de Estado da Cultura do Governo de Maria de Lourdes Pintasilgo (1979), o escritor Helder Macedo, foi leitora de Português no King's College em Londres (1980-1987), presidente da Associação Portuguesa de Escritores (1973-1981), tendo dirigido a revista literária Loreto 13. Foi adida cultural em Cabo Verde (1988-1990) e fez parte do Camões Instituto e da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, extinta em 2002.

Como argumentista, colaborou com os cineastas João César Monteiro ("Que Farei Eu com Esta Espada?", "Veredas", "Silvestre"), Margarida Gil ("Paixão) e Alberto Seixas Santos ("A Rapariga da Mão Morta", "E o Tempo Passa"). O romance "Maina Mendes" (1969) destacou-a no panorama literário. A protagonista é uma mulher entregue à sua mudez, que vai "inventar a fala", a sua própria fala, "autónoma e soberana, de que os homens usufruem sem riscos e desde sempre, por direito divino", como escreve Eduardo Lourenço no prefácio à 2.ª edição da obra.

Sucedem-se títulos ensaísticos, técnicos, de ficção como "Ensino Primário e Ideologia" (1972), "Desescrita" (1973), "Cravo" (1976), "Português, Trabalhador, Doente Mental" (1977).

Em "Casas Pardas" (1977), evoca os tempos em volta da Revolução, através do testemunho de várias protagonistas, numa sucessão de monólogos que tecem o drama. Em "Da Rosa Fixa" (1978), obra concluída na Sexta-Feira da Paixão de 1978, prossegue a pesquisa da palavra, da essência da escrita, num registo mais próximo da poesia. "Esta cidade é dolorosa pelo lado do ar, ridentemente escassa aos que dela fenecem com sorriso".

Surge então "Corpo Verde" (1979), na mesma linha, antes de dois romances centrais no seu percurso: "Lúcialima" (1983), Prémio D. Diniz, publicado originalmente pelas edições O Jornal, com uma capa expressamente concebida pela artista Paula Rego para a escritora, e "Missa in Albis" (1988), Prémio PEN de Novelística. Pelo meio houve "O Mapa Cor de Rosa" (1984).

Entre as suas obras mais recentes contam-se os contos "Dores" (1994), com a artista plástica Teresa Dias Coelho, Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco e Prémio da Associação Portuguesa de Críticos Literários, a peça "Madame" (2000), Grande Prémio de Teatro da APE, que foi interpretada pelas atrizes Eunice Muñoz e Eva Wilma, o romance "Irene ou o Contrato Social" (2000), Grande Prémio APE, e "Myra" (2008), que acabou por ser o seu último romance, e que recebeu o Prémio Máxima de Literatura, o Prémio Literário Correntes d’Escritas e o Grande Prémio de Literatura dst.

Escreveu ainda "Das Áfricas", com José Afonso Furtado (1991), e "O Livro do Meio", com Armando Silva Carvalho (2006).

As sua obra encontra-se traduzida em várias línguas, fazendo parte de catálogos de editoras como La Différence, Bantom Books, Doubleday & Co, Ullstein, Gustav Kiepenheuer e Rizzoli.

Recebeu o Prémio Vergílio Ferreira pelo conjunto da obra literária, em 1997, foi feita Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique e, em 2011, Grande-Oficial da Ordem da Liberdade.

O Prémio Vida Literária, da APE, chegou em 2013. No discurso de aceitação, disse que a literatura não é só "uma arte, um ofício", mas também "a palavra no tempo, na história, no apelo do entusiasmo do que pode ser lido ou ouvido, a busca da beleza ou da exatidão ou da graça do sentir".

A literatura é "o poder da palavra e o seu gosto, descrita ou dita por aqueles que a falaram, escreveram e inscreveram em nós um modo de ser para a escrita". "Fiz da minha vida um jogo de uma periculosidade tão íntima, tão cordata, que a minha morte, ainda que lenta, natural, não poderá ser mais que um assassinato inscientemente premeditado, de que vos ilibo. Ah, o ar da colina, planando alto não tem generosidade, respirai compassadamente a escassez, a orla do íngreme", escreveu em "Da Rosa Fixa".

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