Notícia
O legado de Raymond Aron
Foi um dos mais estimulantes intelectuais franceses do século XX. Agora, as suas memórias, que nos trazem muita luz sobre esses tempos, são publicadas em Portugal.
Raymond Aron
Memórias
Guerra & Paz, 765 páginas, 2018
Quando faleceu, em 1983, Raymond Aron era uma figura incontornável da cultura francesa. São hoje famosas as suas guerras com Jean-Paul Sartre, de quem fora amigo, nos anos quentes das lutas ideológicas das décadas de 1960 e 1970, sobretudo quando o marxismo (e as suas variantes estalinistas e maoistas) e o liberalismo de então entraram em choque frontal.
Aron, ao longo dos anos, sempre teve a capacidade de olhar mais desapaixonadamente para a política e para a cultura do que muitos dos seus contemporâneos franceses: basta lermos aqui as suas memórias sobre momentos incandescentes como foram o discurso de Khrushchev (que deixou a esquerda comunista europeia num dilema: entre dizer que não sabiam do gulag ou que estavam distraídos) ou as guerras na Indochina e na Argélia.
É curiosa também a forma como Aron olha para a entrada da Grã-Bretanha no Mercado Comum, algo que os franceses não viam com bons olhos (De Gaulle considerava Londres uma espécie de toupeira americana na Europa): "Os britânicos não desejavam nada participar na Comunidade Europeia, mas detestavam ser excluídos. O Mercado Comum parecia-me ainda frágil demais para aceitar imediatamente um novo membro cujos objectivos e interesses não combinassem com os de França." É muito interessante ler as memórias de Aron sobre este tema, numa altura em que tanto se fala do Brexit.
Os escritos de Aron foram originalmente publicados cerca de um mês antes da sua morte, em 1983, e são uma poderosa memória do século XX francês e europeu. São ainda muito mais interessantes porque Aron foi, durante muito tempo, desprezado pela elite cultural francesa (de militância comunista ou próxima), apesar da sua presença constante como professor e como um dos mais notáveis pensadores do país. Hoje tem-se a certeza de que o maior legado de Aron foi a forma como ensinou os seus estudantes a pensar a política, a história e a sociedade, algo que hoje tanto falta no nosso mundo.
Depois encontramos o seu papel na vida política e intelectual francesa durante quatro décadas. Para ele, a ideia central era traduzir a poesia ideológica para a prosa da realidade. Socialista nos seus anos de juventude, Aron desenvolveu parte do seu trabalho a mostrar o que separava os regimes totalitários dos liberais. O seu grande ataque à intelectualidade francesa, com "O Ópio dos Intelectuais" (de 1955), valeu-lhe uma espécie de excomunhão. Para muitos, ele tornou-se o "intelectual da direita", algo que não era. Era um defensor do atlantismo, achando que só os EUA poderiam defender a Europa da então União Soviética. Crítico do Maio de 1968, após 1975 viu muitos dos que o criticavam a reconhecer-lhe razão. Crítico de Giscard d'Estaing, tinha alguma ligação a François Mitterrand.
São muito curiosas também as memórias de Aron sobre Portugal no pós-25 de Abril e sobre a forma quente como a Revolução dos Cravos foi debatida em França. Há uma frase clara: "Graças ao seu império, Portugal mantinha algum reflexo da grandeza passada; reduzida ao seu território, já não mantém projecto nem ilusão. A Comunidade Europeia oferece-lhe uma via de retirada mais do que um novo começo." É esta lucidez que transpira destas páginas.
Memórias
Guerra & Paz, 765 páginas, 2018
Quando faleceu, em 1983, Raymond Aron era uma figura incontornável da cultura francesa. São hoje famosas as suas guerras com Jean-Paul Sartre, de quem fora amigo, nos anos quentes das lutas ideológicas das décadas de 1960 e 1970, sobretudo quando o marxismo (e as suas variantes estalinistas e maoistas) e o liberalismo de então entraram em choque frontal.
É curiosa também a forma como Aron olha para a entrada da Grã-Bretanha no Mercado Comum, algo que os franceses não viam com bons olhos (De Gaulle considerava Londres uma espécie de toupeira americana na Europa): "Os britânicos não desejavam nada participar na Comunidade Europeia, mas detestavam ser excluídos. O Mercado Comum parecia-me ainda frágil demais para aceitar imediatamente um novo membro cujos objectivos e interesses não combinassem com os de França." É muito interessante ler as memórias de Aron sobre este tema, numa altura em que tanto se fala do Brexit.
Os escritos de Aron foram originalmente publicados cerca de um mês antes da sua morte, em 1983, e são uma poderosa memória do século XX francês e europeu. São ainda muito mais interessantes porque Aron foi, durante muito tempo, desprezado pela elite cultural francesa (de militância comunista ou próxima), apesar da sua presença constante como professor e como um dos mais notáveis pensadores do país. Hoje tem-se a certeza de que o maior legado de Aron foi a forma como ensinou os seus estudantes a pensar a política, a história e a sociedade, algo que hoje tanto falta no nosso mundo.
Depois encontramos o seu papel na vida política e intelectual francesa durante quatro décadas. Para ele, a ideia central era traduzir a poesia ideológica para a prosa da realidade. Socialista nos seus anos de juventude, Aron desenvolveu parte do seu trabalho a mostrar o que separava os regimes totalitários dos liberais. O seu grande ataque à intelectualidade francesa, com "O Ópio dos Intelectuais" (de 1955), valeu-lhe uma espécie de excomunhão. Para muitos, ele tornou-se o "intelectual da direita", algo que não era. Era um defensor do atlantismo, achando que só os EUA poderiam defender a Europa da então União Soviética. Crítico do Maio de 1968, após 1975 viu muitos dos que o criticavam a reconhecer-lhe razão. Crítico de Giscard d'Estaing, tinha alguma ligação a François Mitterrand.
São muito curiosas também as memórias de Aron sobre Portugal no pós-25 de Abril e sobre a forma quente como a Revolução dos Cravos foi debatida em França. Há uma frase clara: "Graças ao seu império, Portugal mantinha algum reflexo da grandeza passada; reduzida ao seu território, já não mantém projecto nem ilusão. A Comunidade Europeia oferece-lhe uma via de retirada mais do que um novo começo." É esta lucidez que transpira destas páginas.