Notícia
Vamos lá reduzir a nossa ignorância sobre chocolate
Quem ler o livro “Do Cacau ao Chocolate” fica apto a debater tu cá tu lá com qualquer chocolatier deste mundo. Belga, suíço ou francês, é só escolher. Nesta como nas obras anteriores, Fátima Moura desenvolve os temas com rigor, mas sem tiques académicos.
08 de Setembro de 2018 às 19:00
Fátima Moura é investigadora e escritora sobre alimentos que fizeram a História de Portugal. E, quando digo investigadora e escritora, estou a pesar as palavras. Sim, passa a vida em arquivos, visitas de estudo (cá dentro e lá fora) e entrevistas variadas; e, sim, tem a virtude de, recusando tiques académicos ou registos ligeiros para turista ler, desenvolver os temas de forma tão cativante que torna difícil a interrupção da leitura. Já tinha sentido isso nos seus livros sobre essa técnica muito nossa que é a cataplana ("Cataplana Experience"), sobre peixes ("Portugal - o Melhor Peixe do Mundo", este com José Bento dos Santos), sobre enchidos ("Sabores do Ar e do Fogo") e sobre café ("Conversas de Café"). Agora, sobre esse produto inebriante e misterioso que é o cacau ("Do Cacau ao Chocolate"), a metodologia é a mesma.
Esta semana, quando retirei do envelope o livro "Do Cacau ao Chocolate" - edição dos CTT - comecei logo a folheá-lo e a fixar-me nesta ou naquela página, em fotos antigas e actuais e em infografias didácticas. Quando dei por mim, estava a sair da redacção e a entrar na loja Bettina & Niccolo Corallo, em Lisboa. Uma hora depois estava sentado em casa com o livro ao colo, pedaços de chocolate e um copo da Porto Ruby da edição especial dos 430 anos da Croft. Há vidas piores.
É evidente que um trabalho que demorou dois anos a fazer (é o tempo médio que Fátima Moura dedica a cada obra e isso diz muita coisa) merece leitura tranquila, mas a forma como está editorialmente construído facilita-nos a vida, visto que todos os temas são apresentados por entradas com dois, três ou cinco parágrafos, em português e em inglês, que os tipos do CTT são expertos.
Em quase 300 páginas temos capítulos sobre a fisiologia da planta, as suas variedades, os actuais grandes terroir, o processo de fabrico (da colheita ao chocolate), a origem da cultura na Amazónia, o envio das primeiras plantas para África por decisão de D. João VI, a importância de São Tomé e Príncipe, o desenvolvimento do gosto pelo chocolate na Europa, a fraca adesão que o produto teve cá na pátria, História, muita História e, claro, a fechar, receitas originais dos mestres chocolatier Francisco Siopa e Francisco Moreira.
A cultura do cacau exerce sobre mim fascínio e tristeza. Fascínio porque estamos perante uma planta que, criada no Brasil, no Equador, na Venezuela, em São Tomé ou em Madagáscar, dá perfis de cacau/chocolate completamente diferentes. A roda dos aromas do cacau é tão complexa como a do vinho, visto que, salienta Fátima Moura, estão identificados cerca de 600 compostos voláteis nas sementes do cacau. De facto, a que cheira e sabe o cacau? Dirão: bom, cheira a chocolate e tal. Pois é, mas, consoante a sua origem, o cacau pode ter notas de especiarias, de terra, de bosque, de frutos secos, de frutos frescos, de ervas e plantas secas e por aí fora. Mais, sabiam que existem seis grands crus de cacau, à semelhança do que acontece com a cultura do vinho? E sabiam ainda que, entre estes, o Maragnan, no Brasil, é um terroir tão excepcional que se sustenta em apenas 27 árvores de cacau? Registo este detalhe para que os senhores do Romanée-Conti, com os seus 1,8 hectares de vinha, não pensarem que são o maior mistério da natureza (são é muito mais rentáveis, lá isso...).
Já a questão da tristeza tem que ver com forma que, nós, portugueses, a quem muito a cultura do cacau deve, nos relacionamos com o chocolate ao longo dos séculos. Se no café ainda temos coisas para apresentar lá fora, em matéria de chocolate, e salvaguardadas duas ou três casas, perdemos pela velha margem dos 15 a zero. Até os espanhóis fizeram doces conventuais com chocolate, caramba!; nós, nem um.
A cultura do chocolate, efusivamente aprovada pela Igreja, desenvolveu-se no ciclo da nobreza europeia, mas em Portugal tal não aconteceu. As cortes europeias fizeram do chocolate um produto de luxo; a nossa, não. Daí que, hoje, quando se fala de chocolate de alta qualidade, viajamos mentalmente para a Bélgica, para Suíça ou para França.
Aliás, como observadora atenta a tudo o que tem que ver com a história da gastronomia portuguesa, Fátima Moura remata, com fina ironia, que, "ainda hoje, as nossas elites não são lá muito dadas às questões do bom gosto".
Não será este trabalho que vai resolver o problema, mas aqueles que acham que não faz mal saber mais qualquer coisa sobre um produto que apreciam, façam o favor de ler o livro. Ele é obrigatório na biblioteca de um gastrónomo exigente.
Esta semana, quando retirei do envelope o livro "Do Cacau ao Chocolate" - edição dos CTT - comecei logo a folheá-lo e a fixar-me nesta ou naquela página, em fotos antigas e actuais e em infografias didácticas. Quando dei por mim, estava a sair da redacção e a entrar na loja Bettina & Niccolo Corallo, em Lisboa. Uma hora depois estava sentado em casa com o livro ao colo, pedaços de chocolate e um copo da Porto Ruby da edição especial dos 430 anos da Croft. Há vidas piores.
É evidente que um trabalho que demorou dois anos a fazer (é o tempo médio que Fátima Moura dedica a cada obra e isso diz muita coisa) merece leitura tranquila, mas a forma como está editorialmente construído facilita-nos a vida, visto que todos os temas são apresentados por entradas com dois, três ou cinco parágrafos, em português e em inglês, que os tipos do CTT são expertos.
Em quase 300 páginas temos capítulos sobre a fisiologia da planta, as suas variedades, os actuais grandes terroir, o processo de fabrico (da colheita ao chocolate), a origem da cultura na Amazónia, o envio das primeiras plantas para África por decisão de D. João VI, a importância de São Tomé e Príncipe, o desenvolvimento do gosto pelo chocolate na Europa, a fraca adesão que o produto teve cá na pátria, História, muita História e, claro, a fechar, receitas originais dos mestres chocolatier Francisco Siopa e Francisco Moreira.
A obra dos CTT é acompanhada por uma emissão filatélica dedicada à história do cacau. São quatro selos com preços que variam entre €0,53 e €0,86 e um bloco filatélico por €1,5 (D. João V a beber uma chávena de chocolate). O livro, com fotos de Mário Cerdeira, custa €40 e é um belo candidato ao Gourmand World Cookbook Awards.
A cultura do cacau exerce sobre mim fascínio e tristeza. Fascínio porque estamos perante uma planta que, criada no Brasil, no Equador, na Venezuela, em São Tomé ou em Madagáscar, dá perfis de cacau/chocolate completamente diferentes. A roda dos aromas do cacau é tão complexa como a do vinho, visto que, salienta Fátima Moura, estão identificados cerca de 600 compostos voláteis nas sementes do cacau. De facto, a que cheira e sabe o cacau? Dirão: bom, cheira a chocolate e tal. Pois é, mas, consoante a sua origem, o cacau pode ter notas de especiarias, de terra, de bosque, de frutos secos, de frutos frescos, de ervas e plantas secas e por aí fora. Mais, sabiam que existem seis grands crus de cacau, à semelhança do que acontece com a cultura do vinho? E sabiam ainda que, entre estes, o Maragnan, no Brasil, é um terroir tão excepcional que se sustenta em apenas 27 árvores de cacau? Registo este detalhe para que os senhores do Romanée-Conti, com os seus 1,8 hectares de vinha, não pensarem que são o maior mistério da natureza (são é muito mais rentáveis, lá isso...).
Já a questão da tristeza tem que ver com forma que, nós, portugueses, a quem muito a cultura do cacau deve, nos relacionamos com o chocolate ao longo dos séculos. Se no café ainda temos coisas para apresentar lá fora, em matéria de chocolate, e salvaguardadas duas ou três casas, perdemos pela velha margem dos 15 a zero. Até os espanhóis fizeram doces conventuais com chocolate, caramba!; nós, nem um.
A cultura do chocolate, efusivamente aprovada pela Igreja, desenvolveu-se no ciclo da nobreza europeia, mas em Portugal tal não aconteceu. As cortes europeias fizeram do chocolate um produto de luxo; a nossa, não. Daí que, hoje, quando se fala de chocolate de alta qualidade, viajamos mentalmente para a Bélgica, para Suíça ou para França.
Aliás, como observadora atenta a tudo o que tem que ver com a história da gastronomia portuguesa, Fátima Moura remata, com fina ironia, que, "ainda hoje, as nossas elites não são lá muito dadas às questões do bom gosto".
Não será este trabalho que vai resolver o problema, mas aqueles que acham que não faz mal saber mais qualquer coisa sobre um produto que apreciam, façam o favor de ler o livro. Ele é obrigatório na biblioteca de um gastrónomo exigente.