Notícia
Pequenas histórias com Fernando Guedes
A propósito da morte de Fernando Guedes, duas ou três histórias que me calharam. De caminho, dois vinhos do Porto do universo Ferreira. E por bons preços.
30 de Junho de 2018 às 13:00
O Dona Antónia 10 anos tem as notas de fruta fresca mais presente, com uma boca assaz doce. O Dona Antónia 20 anos é mais sério, com os frutos secos em realce no nariz e o vinagrinho da praxe, com a boca a indicar frutos em passa (figo). Na boca, seco e envolvente. E, por 15€ e 20€, são um achado.
Um tipo está sentado na redacção quando alguém anuncia a morte de Fernando Guedes, o descendente de Fernando van Zeller Guedes e patriarca da mesma família que lidera os destinos da Sogrape. "Acho que tinha 87 anos", disse.
A referência à idade é daqueles clichés que serve para relativizar a notícia, tanto mais que o "senhor Fernando Guedes" (assim era tratado na Sogrape) teve uma vida cheia, mas a minha reacção foi, num misto de tristeza e zanga interior, um desabafo baixinho com duas palavras: "mais um". Mais um não teve que ver com a morte em si do grande senhor do vinho. Teve que ver com o facto de toda a vida ter desejado conversar demorada e tranquilamente (sem gravador) com Fernando Guedes e, na realidade, nunca ter feito o mínimo esforço para que tal acontecesse, sempre com aquela ideia tola de que um dia as coisas aconteceriam naturalmente. Não aconteceram. E eu sou o único culpado.
De facto, o meu contacto com Fernando Guedes foi tipicamente de circunstância, em eventos de apresentação de vinhos da Sogrape, mas ficando eu sempre cativado pelo seu sentido de humor. Quando, em 2012, e a propósito do lançamento do Barca Velha 2004, a comitiva subia de barco do Pocinho para a Quinta da Leda, Fernando Guedes, com um copo de Mateus Rosé na mão (que mais poderá ser?), ia enunciando aos viajantes todas as quintas das duas margens. Alguém apontava o dedo e logo saía o dono da quinta. A dada altura, aparece uma quinta que estava a ser arrasada à força de máquinas e que mais parecia uma pedreira de Sesimbra. Pergunta-se quem é o dono e a resposta foi: "aquela?..., ora bem... aquela, deixe cá ver... olhe, não sei de quem é". Os presentes ficam intrigados, mas o filho Salvador, que estava por perto, comentou baixinho: "Meu pai tem falhas de memórias quando os proprietários revelam pouco respeito pelo Douro." A quinta em causa seria propriedade de um famoso general angolano, na altura em que o Douro se tornou apetecível para misteriosos investimentos. Para Fernando Guedes, a transparência e o respeito pelo património vitícola eram valores fundamentais no negócio.
Três anos depois, e por ocasião do lançamento do Legado 2011 - vinho simbólico que transmite os valores da Sogrape às gerações futuras -, outra história. Fundada em 1942 pelo seu pai, Fernando van Zeller Guedes, o primeiro armazém da Sogrape foi num espaço do Convento de Monchique, no Porto, à beira-rio, de onde se avistam as caves de vinho do Porto, em Gaia. Antes do início do jantar, numa actual galeria de arte do referido convento, Fernando Guedes chega a uma das janelas e diz: "Um dia, meu pai e eu estávamos aqui a olhar para o outro lado do rio e eu disse: ó pai, e se nós comprássemos a Ferreira? Meu pai ficou em silêncio e, depois, desatámos os dois a rir à gargalhada."
A piada é que esta conversa terá acontecido nos anos 50, quando a Sogrape era uma pequena empresa. Mas, nos anos 80, o negócio cumpriu-se mesmo, coisa que fez com que o Barca Velha & companhia entrasse para a empresa, atirando-a para um patamar de qualidade de vinhos muito alto.
De resto, Fernando Guedes terá herdado do pai o gosto pela piada. Sempre que me apresentam uma conta elevada num restaurante, lembro-me de uma história contada por José Serôdio, antigo quadro da Sogrape. Num ano qualquer, e a pretexto da abertura de um mercado estratégico para o Mateus Rosé, Fernando van Zeller Guedes e José Serôdio comemoraram a coisa num restaurante em Paris, com a indicação do primeiro para que não houvesse contenções nos gastos, pelo que o vinho escolhido foi um modesto Château Margaux. Quando chegou a conta, o fundador da Sogrape olhou para o valor e, remetendo o papelinho ao seu convidado, diz: "Ó Serôdio, faça-me o favor de confirmar se o que aí está é mesmo o valor da conta ou o número de telefone deles." É por esta e por muitas outras que acho lamentável a inexistência de biografias, quer do pai quer do filho.
Posto isto, e já que se falou na Ferreira, destaquemos dois vinhos do Porto da empresa que agora passam a integrar a chancela Dona Antónia: um tawny 10 anos e outro 20 anos. O Quinta do Porto 10 anos passa a Dona Antónia 10 anos e o Duque de Bragança 20 anos passa a Dona Antónia 20 anos. E é com um copo deste último que brindo à memória de Fernando Guedes.
Um tipo está sentado na redacção quando alguém anuncia a morte de Fernando Guedes, o descendente de Fernando van Zeller Guedes e patriarca da mesma família que lidera os destinos da Sogrape. "Acho que tinha 87 anos", disse.
De facto, o meu contacto com Fernando Guedes foi tipicamente de circunstância, em eventos de apresentação de vinhos da Sogrape, mas ficando eu sempre cativado pelo seu sentido de humor. Quando, em 2012, e a propósito do lançamento do Barca Velha 2004, a comitiva subia de barco do Pocinho para a Quinta da Leda, Fernando Guedes, com um copo de Mateus Rosé na mão (que mais poderá ser?), ia enunciando aos viajantes todas as quintas das duas margens. Alguém apontava o dedo e logo saía o dono da quinta. A dada altura, aparece uma quinta que estava a ser arrasada à força de máquinas e que mais parecia uma pedreira de Sesimbra. Pergunta-se quem é o dono e a resposta foi: "aquela?..., ora bem... aquela, deixe cá ver... olhe, não sei de quem é". Os presentes ficam intrigados, mas o filho Salvador, que estava por perto, comentou baixinho: "Meu pai tem falhas de memórias quando os proprietários revelam pouco respeito pelo Douro." A quinta em causa seria propriedade de um famoso general angolano, na altura em que o Douro se tornou apetecível para misteriosos investimentos. Para Fernando Guedes, a transparência e o respeito pelo património vitícola eram valores fundamentais no negócio.
Três anos depois, e por ocasião do lançamento do Legado 2011 - vinho simbólico que transmite os valores da Sogrape às gerações futuras -, outra história. Fundada em 1942 pelo seu pai, Fernando van Zeller Guedes, o primeiro armazém da Sogrape foi num espaço do Convento de Monchique, no Porto, à beira-rio, de onde se avistam as caves de vinho do Porto, em Gaia. Antes do início do jantar, numa actual galeria de arte do referido convento, Fernando Guedes chega a uma das janelas e diz: "Um dia, meu pai e eu estávamos aqui a olhar para o outro lado do rio e eu disse: ó pai, e se nós comprássemos a Ferreira? Meu pai ficou em silêncio e, depois, desatámos os dois a rir à gargalhada."
A piada é que esta conversa terá acontecido nos anos 50, quando a Sogrape era uma pequena empresa. Mas, nos anos 80, o negócio cumpriu-se mesmo, coisa que fez com que o Barca Velha & companhia entrasse para a empresa, atirando-a para um patamar de qualidade de vinhos muito alto.
De resto, Fernando Guedes terá herdado do pai o gosto pela piada. Sempre que me apresentam uma conta elevada num restaurante, lembro-me de uma história contada por José Serôdio, antigo quadro da Sogrape. Num ano qualquer, e a pretexto da abertura de um mercado estratégico para o Mateus Rosé, Fernando van Zeller Guedes e José Serôdio comemoraram a coisa num restaurante em Paris, com a indicação do primeiro para que não houvesse contenções nos gastos, pelo que o vinho escolhido foi um modesto Château Margaux. Quando chegou a conta, o fundador da Sogrape olhou para o valor e, remetendo o papelinho ao seu convidado, diz: "Ó Serôdio, faça-me o favor de confirmar se o que aí está é mesmo o valor da conta ou o número de telefone deles." É por esta e por muitas outras que acho lamentável a inexistência de biografias, quer do pai quer do filho.
Posto isto, e já que se falou na Ferreira, destaquemos dois vinhos do Porto da empresa que agora passam a integrar a chancela Dona Antónia: um tawny 10 anos e outro 20 anos. O Quinta do Porto 10 anos passa a Dona Antónia 10 anos e o Duque de Bragança 20 anos passa a Dona Antónia 20 anos. E é com um copo deste último que brindo à memória de Fernando Guedes.