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O artífice de curvas

O ícone brasileiro questionou a rigidez das linhas rectas, assumiu o comunismo e viveu exilado.

07 de Dezembro de 2012 às 14:00
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O ícone brasileiro da arquitectura moderna do século XX despediu-se do mundo aos 104 anos. Questionou a rigidez das linhas rectas, assumiu o comunismo e viveu exilado. 

Construiu Brasília e ganhou um Pritzker. Em Portugal deixou um hotel e um casino no Funchal. Niemeyer gostava de feijoada e odiava aviões. O ateliê em Copacabana era uma casa aberta. Com quantas curvas, afinal, se traçará o perfil do arquitecto centenário? 

Nome maior da arquitectura brasileira e mundial, Oscar Niemeyer viveu mais de um século e deixou um legado que vai para lá do prémio Pritzker, conquistado em 1988, e da distinção de Património Cultural dada a Brasília, a capital que ajudou a construir, por encomenda do então presidente brasileiro, Juscelino Kubitschek. O professor universitário Carlos Oliveira Santos teve a oportunidade de o conhecer, quando preparava a edição dos livros "O nosso Niemeyer" e "Olhar Niemeyer". "Uma figura grandiosa de uma abertura e humanidade impressionantes", é a síntese possível, em poucas palavras, do homem que aos 104 anos deixou o mundo dos vivos num hospital no Rio de Janeiro.

Comunista de longa data, Niemeyer levou do papel ao terreno a convicção ideológica. Foi seu o projecto da sede do Partido Comunista Francês. "Tinha do comunismo a visão aberta, libertária, de agarrar-se ao respeito pela condição humana", aponta o professor português. Mas o pensamento de Niemeyer não se limitou às linhas políticas que tanto mexeram com o mundo nas décadas em que o jovem arquitecto cresceu e se tornou referência de um novo estilo, com um crédito assente em centenas de projectos dentro e fora do Brasil, mas também na experiência materializada nas rugas infinitas do seu rosto. Mas mesmo na velhice, Niemeyer não cessou de trabalhar. Carlos Oliveira Santos assegura que o arquitecto brasileiro tinha lucidez "total". "Ele ia nos seus 90 e tal anos, a preparar o segundo casamento, com a sua secretária [Vera Cabreira]. Encontrávamo-nos normalmente no seu ateliê de Copacabana", conta o professor português, notando que há "milhares de testemunhos" de como Niemeyer era acessível a quem o contactava. Não foi, por isso, difícil recolher o contributo do próprio arquitecto para os livros que seriam publicados em Portugal para o homenagear. "Foi facílimo. Lá almocei. Lá vivi, na sua Casa das Canoas [no Rio de Janeiro]", recorda Carlos Oliveira Santos.

Já velho, Oscar Niemeyer não deixava de comer a sua feijoada. Gostava de receber pessoas no seu ateliê. Tinha na astronomia uma das suas paixões pessoais. E nos aviões a sua maior aversão. "O Niemeyer odeia o avião. Conta-se que às vezes até ia anestesiado", explica o autor de "O nosso Niemeyer". Não surpreendeu, por isso, que o arquitecto de Brasília tenha faltado à exposição que em 2001 o ISCTE lhe dedicou no Pavilhão de Portugal, em Lisboa. Mesmo para o projecto de hotel, casino e centro de espectáculos que fez para o Funchal, nos anos 60, diz Carlos Oliveira Santos, "ele nunca se deslocou à Madeira". Nessa altura, exilado em Paris para escapar à ditadura militar vigente no Brasil, fez questão de chamar o arquitecto português Alfredo Viana de Lima para trabalhar consigo. Segundo o professor, "o projecto da Madeira só foi possível pela grandeza da família Barreto", que decidiu investir no complexo que mais tarde ostentaria a marca Pestana.

Vários projectos de Niemeyer para Portugal nunca saíram do papel. Entre eles uma urbanização no Algarve e uma sede para a Fundação Luso-Brasileira. "Pela mesquinhice e pequenez do País", acusa Carlos Oliveira Santos. Em Portugal o arquitecto brasileiro passou pelo Porto, Estoril e Lisboa, onde chegou a ficar instalado no Hotel Ritz.

Mas para lá do "nosso Niemeyer", persistem os 104 anos do outro Niemeyer, o que deixou na arquitectura do século XX marcas de modernidade, pela sua capacidade de moldar o cimento à liberdade da imaginação humana. Desafiando o domínio dos ângulos rectos, mas sem esquecer o compromisso de funcionalidade da arquitectura, Niemeyer cedo definiu as suas ambições, logo nos primeiros anos após a formação na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. "A curva me atraía. A curva livre e sensual que a nova técnica sugeria e as velhas igrejas barrocas lembravam", recordaria o arquitecto a propósito do projecto da Pampulha, em Belo Horizonte, onde desenhou, em 1940, uma igreja com linhas pouco ortodoxas. A oportunidade veio por Juscelino Kubitschek, o homem que anos mais tarde, já na qualidade de Presidente da República, o convidaria para construir Brasília de raiz.

"Eu via a preocupação de um velho amigo ao qual estava ligado por outros trabalhos, outras dificuldades e por uma longa e fiel amizade. A partir desse dia, comecei a viver em função de Brasília", contou o arquitecto. E Brasília viria a viver também em função de Niemeyer e do colega Lúcio Costa. Do Palácio da Alvorada ao Congresso Nacional, passando pela Catedral e pelo aeroporto, a capital brasileira transpira, nos edifícios públicos, a inspiração de Oscar Niemeyer.

Ao receber o Pritzker, em 1988, o brasileiro avaliava o estado da arquitectura no mundo. "Agora é o concreto armado a oferecer todas as fantasias, os vãos imensos, os balanços extraordinários. E nele a arquitectura se integra, desprezando os velhos preconceitos que durante anos a desvirtuaram, contestando a opção racionalista, monótona, repetida, tão fácil de elaborar", comentou.

Na quarta-feira, a dez dias de completar 105 anos de vida, Niemeyer não resistiu às complicações provocadas por uma infecção respiratória. Deixou bisnetos e trinetos. E uma obra onde as curvas e contracurvas se sucedem até ao infinito.

 

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