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O futuro dos livros num país de poucos leitores

Num país de poucos leitores, como será o futuro do livro? É uma pergunta que a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) leva a debate na próxima semana e para a qual há muitas respostas. O escritor Afonso Cruz defende uma maior abertura à comunidade, algo que, por exemplo, a associação BandLivros está a promover, com as suas bibliotecas móveis.
Susana Torrão 25 de Agosto de 2023 às 14:45

As páginas de um livro abrem um sem fim de possibilidades: da evasão ao conhecimento, passando pela emoção ou simples entretenimento. Mas em Portugal lê-se pouco, e numa era em que o digital, a sustentabilidade e a educação aparecem como os principais vetores a marcar o futuro do livro, a APEL reúne nos próximos dias 31 de agosto e 1 de setembro os principais intervenientes do setor no Picadeiro Real, em Belém, na primeira edição do Book 2.0#The Future of Reading. O objetivo, explica Sílvia Rodriguez, diretora executiva do Book 2.0, é "criar um plano de ação de compromissos que possam ajudar a transformar o setor em Portugal".

 

Sabe-se que o digital afeta o modelo de negócio do setor. "Neste campo, há a considerar não apenas a inteligência artificial (IA), mas também as redes sociais e toda a tecnologia. Temos de perceber como é que as alterações de hábitos do mundo digital podem coexistir em modelos híbridos, para não se perder aquilo que são os livros em papel", refere Sílvia Rodriguez. A diretora executiva do Book 2.0 encara mesmo a IA como uma oportunidade. "Há métodos e procedimentos que podem ser melhorados, quer ao nível das traduções quer até da criação de conteúdos", afirma.

 

Para Afonso Cruz, escritor, músico e ilustrador, a inteligência artificial ficará associada a uma maior produção de livros e terá um papel determinante no apoio à seleção da informação. "Um livro, em vez de ser escrito num ano, será escrito num mês ou menos, tendo uma base de IA e sendo depois trabalhado ao estilo de um determinado autor", antecipa. O desafio prende-se com a seleção de um crescente número de dados e conhecimento. "Em relação à leitura, os telefones e o Google acabam por ser uma espécie de memória externa. Temos acesso a uma quantidade absurda de informação, que é preciso selecionar. E a IA poderá ser uma ajuda para nessa seleção".

 

Ainda assim, Afonso Cruz acredita que, tal como o cinema não extinguiu o teatro ou a televisão a rádio, o livro em papel vai continuar a existir. "Numa sociedade cada vez mais laica, a leitura assume um papel essencial de espiritualidade, de contemplação, de silêncio", diz. E não crê que o ritmo mais acelerado e a omnipresença de textos curtos condicionem os hábitos de leitura. "Apesar de vivermos numa sociedade muito rápida, ela também nos oferece momentos de placidez para usarmos como bem entendermos. E esse é um bem muito precioso".



Sílvia Rodriguez, diretora executiva do Book 2.0, encara a inteligência artificial (IA) como um oportunidade para o mercado livreiro.


Sílvia Rodriguez lembra o papel que as plataformas e redes sociais podem ter na promoção da leitura e da literacia. Por Belém, estará a BookToker Maria João Ferreira, para debater o "uso saudável" das redes sociais. "É uma nova forma de escrita e de leitura". As novas plataformas podem até funcionar como "motivação para quem lê ou procura o conhecimento".

 

Leitura e literacia

 

No primeiro dia do Book 2.0, vai ser apresentado um estudo encomendado pela APEL à GFK que vai revelar novos dados sobre os índices de leitura e literacia. Os últimos números não são animadores: um estudo realizado em 2020 pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, para a Gulbenkian, mostra que 61% da população não lê livros. Uma realidade confirmada no inquérito ao rendimento e às condições de vida do INE, de acordo com o qual, em 2022, 58,1% dos portugueses não leu um único livro, 65,7% dos quais por assumida falta de interesse.

 

"Temos alguma curiosidade em saber o que este estudo nos vai revelar", diz Sílvia Rodriguez, para quem o diálogo que a APEL propõe pretende "posicionar o país no contexto europeu e perceber o que pode ser feito. "Acredito que um determinado enquadramento económico, de políticas públicas, ou eventualmente enquadramento cultural, possam trazer estes índices a níveis mais próximos da média europeia", aponta.

 

"Todos devem ter acesso à cultura e liberdade, mas nem toda a gente terá de ser um leitor da mesma maneira que nem toda a gente terá de ouvir música ou saber fazer cadeiras", defende Afonso Cruz. Quando olha para os índices de leitura portugueses, mantém ainda assim um certo otimismo. "Parece que houve um tempo em que as pessoas liam muito mais do que agora, mas isso não me parece verdade", diz o escritor, para quem é evidente que há uma preferência por outros tipos de entretenimento.

 

Quanto à discrepância face a outros países europeus, há que ter em conta o acesso ainda recente à escolaridade por parte da população portuguesa. "Nos anos 1940, quando o meu pai nasceu, metade da população era analfabeta. Quando eu nasci [1971], um quarto da população era analfabeta. Se se fizesse este mesmo estudo há uns anos, as pessoas nem sequer tinham acesso à leitura, algo que contrariava um dos direitos humanos fundamentais, que é precisamente o acesso à cultura", lembra.

 

Nem toda a gente encontra prazer nos livros, nota Afonso Cruz, citando a antropóloga francesa Michèle Petit, que defende a existência de duas abordagens ao incentivo da leitura. Uma passa pela educação para a leitura, mas tende a falhar, uma vez que assenta numa lógica de imposição. A outra abordagem aposta sobretudo no prazer da leitura, mas também apresenta as suas debilidades. "No livro ‘Como um romance’, Daniel Pennac compara a leitura ao amor. Diz mesmo que a leitura não admite imperativos: não podemos obrigar uma pessoa a amar, da mesma forma que não podemos obrigar uma pessoa a ler", recorda Afonso Cruz. "O leitor assíduo, que pega em livros e os lê com frequência", será sempre uma minoria.



Tal como o cinema não extinguiu o teatro ou a televisão a rádio, o livro em papel vai continuar a existir, considera o escritor Afonso Cruz.


O que mais chocou o escritor no estudo revelado pela Gulbenkian foi o facto de uma percentagem muito grande dos inquiridos referir o medo de se sentir humilhado ao entrar em espaços culturais. Para Afonso Cruz, as bibliotecas e os museus devem sair à rua e abrir-se à comunidade. Aponta o exemplo do projeto "Mirar Distinto", na província colombiana de Antioquia, que construiu bibliotecas em bairros carenciados – os seus habitantes passaram então a juntar-se nesses espaços culturais, conta.

 

Ao longo dos anos, as bibliotecas têm vindo a transformar-se em espaços de discussão em que o silêncio já não é a (única) regra. "O momento em que a biblioteca passa a ter voz é outro estágio. E essa voz terá de sair – os livros têm de falar uns com os outros", defende Afonso Cruz, que acredita que tudo isto pode ser feito em espaços do quotidiano tais como jardins e cafés. Estas iniciativas são também fundamentais para criar leitores.

 

Algo em que os membros da associação Bandlivros, em Almada, também acreditam. Pensado antes de 2020 e posto em prática em plena pandemia, o projeto conta já com seis bibliotecas móveis em pontos tão distintos como o coreto de um jardim (na Cova da Piedade), uma loja, o átrio de uma escola ou instalações de juntas de freguesia. "Tudo funciona numa lógica de troca por troca e o objetivo é que os livros circulem o mais possível", explica Ana Paula Silva, uma das responsáveis.

 

Juntam-se ao projeto eventos mensais, na maioria ao ar livre, e com muitos contadores de histórias e atividades para os mais novos. Vocacionada para um público dos 3 aos 10 anos, a Bandlivros tem visto os seus leitores crescer tanto em anos como em número: por ano, são cerca de mil as crianças que participam nas atividades. Começam como "ouvintes" e tornaram-se pequenos leitores – a pensar neles, há já mais três bibliotecas móveis em preparação.

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