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O destino dos vivos

Germano Almeida regressa com o seu estilo irónico, através de um livro que parece um policial, mas não o é. Um olhar sobre o mundo dos vivos, a partir de Cabo Verde.

Fernando Sobral fsobral@negocios.pt 02 de Junho de 2018 às 18:00
Germano Almeida
O Fiel Defunto
Caminho, 317 páginas, 2018


Germano Almeida acabou de ser distinguido com o Prémio Camões e isso diz um pouco sobre o poder simbólico que o escritor cabo-verdiano ganhou há muito. Marco de uma cultura viva e refrescante (seja na literatura ou na música), Germano Almeida representa um universo que toca muitas vezes com a nostalgia portuguesa, onde a constante emigração, a lógica de sobrevivência e a tentativa de descobrir o sentido do destino estão muito presentes.

Tal como em livros anteriores, o novo "O Fiel Defunto" tem um morto como principal personagem. Esta obra pode ter uma característica "mais policial" (quem matou o escritor Miguel Lopes Macieira no dia do lançamento do seu, há muito aguardado, novo livro, depois de anos de refúgio). Mas, como acontece muitas vezes na prosa de Germano Almeida, os mortos (apesar de andarem a pairar por aí) continuam a colocar a sua impressão digital no desígnio do que sucede no universo dos que estão vivos.

Se recordarmos, foi isso mesmo que sucedeu com "O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo" (de 1989), ou " A Morte do Ouvidor" (de 2010). Há aqui, como sempre, muita ironia. Germano Almeida traz-nos uma personagem que trabalhava muito: escrevia dois livros por ano, mas depois há um grande silêncio, como se se tivesse cansado. E talvez fosse isso. Ou não. O certo é que, passados uns anos, volta a publicar, mas alguém lhe dá dois tiros e ele acaba por morrer no dia do lançamento, perante o espanto de todos os presentes. Não era um escritor qualquer: tinha colocado o nome e Cabo Verde no mundo. As preocupações estendem-se até ao Governo. A partir daí, vai-se reparando na teia das pessoas que estavam ligadas ao escritor. Vamos conhecendo-as.

A viagem leva-nos até à sua paixão por Mariza e à sua lógica de prioridades ("Porém, perdida a novidade da casa nova, mobiliário novo, cortinas novas, foram escasseando as actividades sexuais, umas vezes porque ele tardava no escritório e, quando chegava ao quarto, ela estava já adormecida, outras porque chegava tão cansado e com a cabeça tão longe da mulher que não havia maneira de reagir a qualquer estímulo, de modo que ela também foi-se afastando dele. Os nossos filhos são os nossos livros, disse ele quando certo dia lhe foi perguntado se não pretendia procriar, deixar descendência. Os livros são teus filhos, corrigiu ela quando ouviu a entrevista, eu quando muito sou madrasta").

Vamos conhecendo, a pouco e pouco, a vida de Macieira e também daqueles que circulam à sua volta, dando-nos Germano Almeida, ao mesmo tempo, um postal muito bem ilustrado do Mindelo e de Cabo Verde. É todo este universo que transpira aqui de forma muito atraente, por trás de um mistério (o assassínio do escritor). Mas, claro, o que acabamos por conhecer é a vida deste homem que se despediu assim, de forma trágica, do mundo dos vivos.

Germano Almeida continua a ser um excelente contador de histórias, algo que vinha provando ao longo de todos estes anos, em que partilha connosco o mundo mágico de Cabo Verde.



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