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Margarida de Magalhães Ramalho: A vida e a História não podem ser vistas a preto e branco

A historiadora Margarida de Magalhães Ramalho tem investigado as histórias dos refugiados judeus que passaram por Portugal durante a Segunda Guerra Mundial. São essas histórias, que muitas vezes lhe vêm parar às mãos por “coincidências”, que conta no livro “Fios Vermelhos”, editado pelo Clube do Autor.
Filipa Lino e Miguel Baltazar - Fotografia 29 de Outubro de 2021 às 11:00

A historiadora Margarida de Magalhães Ramalho tem investigado as histórias dos refugiados judeus que passaram por Portugal durante a Segunda Guerra Mundial. São essas histórias, que muitas vezes lhe vêm parar às mãos por "coincidências", que conta no livro "Fios Vermelhos", editado pelo Clube do Autor. Foi assim também que conheceu Aristides de Sousa Mendes, o cônsul de Bordéus que salvou milhares de pessoas do Holocausto e que recebeu recentemente honras de Panteão. O diplomata, que agora tem o estatuto de herói, "não foi consensual" dentro do Ministério dos Negócios Estrangeiros, diz a coautora do Museu Virtual Aristides de Sousa Mendes e responsável científica pelo Museu Vilar Formoso, Fronteira da Paz, memorial aos Refugiados e ao Cônsul Aristides de Sousa Mendes. A questão da desobediência em tempo de guerra foi difícil de digerir.

As coisas mais interessantes do passado são as que não estão nos livros de História?

O que está nos livros é uma parte muitíssimo importante para compreendermos o todo. Os historiadores não trabalham a partir do zero. Mas é, de facto, importante termos a perceção, quando olhamos para a documentação, de que nunca conta tudo. Consoante os regimes ou as situações políticas, as pessoas só relatam aquilo que lhes interessa ou partem do pressuposto de que quem as vai ler já está por dentro do assunto, por isso não precisam de contar tudo. Além disso, há tudo aquilo que as pessoas anónimas guardaram. Cartas, diários, papéis que colecionaram… Esse testemunho individual, oral ou escrito, de pessoas que nunca imaginaram que iriam ser lidas ou que a sua história iria ser conhecida, é fundamental, porque não foi fantasiada para ser lida. Um rei ou uma princesa sabe perfeitamente que tudo aquilo que deixar escrito vai ser lido, porque é uma figura destacada. Já a jovem que escreveu sobre uma viagem que fez para Timor no final do século é só uma miúda a escrever. São coisas muito mais genuínas e muitas vezes dão pormenores e informações muitíssimo importantes.

Um historiador deve mexer na História com pinças ou com as mãos?

Depende. Tem de mexer com pinças quando são assuntos que implicam situações éticas de pessoas que estão próximas. Isso já me aconteceu. Quando estudei os diários de Thomaz de Mello Breyner [avô de Sophia de Mello Breyner] para escrever o livro "Thomaz de Mello Breyner: relatos de uma época", percebi que escrevia para si próprio. E, como médico, dá uma série de informações que eram obviamente confidenciais. Algumas dessas informações estão associadas a famílias que ainda hoje são conhecidas. Isso não é para ser divulgado, são coisas íntimas. Se esse pormenor sórdido não é determinante para a história, não provocou a queda de um governo, a morte de um político, uma desgraça, qualquer coisa de verdadeiramente importante, se é só um pormenor da vida privada, não tenho nada com isso.

 

É confrontada muitas vezes com esse tipo de questões éticas?

Às vezes. Não é muito frequente. Há uns anos, estava na Torre do Tombo a preparar uma exposição sobre o rei D. Carlos e, nas coisas que me vieram parar às mãos, estava um envelope lacrado a preto, que nunca ninguém tinha aberto. Tinha escrito, com uma letra que me pareceu ser da rainha D. Amélia, "cartas sem interesse". Pedi autorização e abri. Era um conjunto de cartas de amor trocadas entre o rei e uma senhora. Eram muito bonitas. Percebia-se que havia uma intimidade e uma cumplicidade muito interessante entre aquelas duas pessoas. Achei que não teria pés nem cabeça divulgar uma coisa que era tão íntima e bonita. São essas pinças que às vezes são precisas.

Não faço ideia se temos uma missão na vida. Se tivermos, a minha é fazer a ligação entre pessoas.

Um historiador comove-se e envolve-se emocionalmente quando está a fazer investigação e lhe chegam às mãos cartas, diários ou fotografias? Ou tem de ser muito racional e deixar os sentimentos de parte?

Eu tenho uma parte emotiva e choro com alguma facilidade. Houve um refugiado que passou por Vilar Formoso que me enviou um pequeno texto e me pediu para o ler à população. Não fui capaz de o fazer sem me emocionar. Não me sinto nada mal por isso, mas às vezes não é confortável. Uma vez, na Torre do Tombo, estava a ler os diários do Thomaz de Mello Breyner e, na parte em que ele fala na morte da filha Maria da Luz, chorei que nem uma Madalena. A ponto de o senhor que estava à minha frente me perguntar o que é que eu estava a ler. Às vezes também fico eufórica porque descubro algo muito importante. Outras vezes fico revoltada com uma coisa muito feia e muito dramática.

 

Muitas das suas investigações históricas começam com coincidências. Foi assim que chegou às pessoas que refere no livro?

Completamente. Não faço ideia se temos uma missão na vida. Se tivermos, a minha é fazer a ligação entre pessoas. Estas histórias chegaram até mim por coincidências. De alguma forma vou cruzar-me com as próprias pessoas ou com os seus testemunhos de uma forma indireta, que vêm por um filho, um neto ou por outra qualquer pessoa.



O que é que aprendeu com essas pessoas?

Aprendi que podemos ser atirados ao chão vezes sem conta, mas podemos sempre levantar-nos. Os refugiados que conheço eram crianças na altura, mas os pais foram pessoas que perderam tudo: família, posição social, dinheiro... E, no entanto, foram recomeçar noutro lado.

 

Porque quis incluir um capítulo sobre os alemães que residiam em Lisboa?

Porque estavam cá e também tiveram a sua parte da guerra. Conto a história de um miúdo, o João Schedel, que foi recrutado na Escola Alemã quando a situação na Alemanha já era desesperada devido, sobretudo, à questão da invasão da Rússia. Berlim começou a recrutar rapazes alemães cada vez mais cedo e, quando já não tinha mais para recrutar, foi buscá-los fora. Este João Schedel nasceu e viveu cá, sempre. Mas é recrutado com 16 anos e vai para a guerra. E tem uma história para contar. Outra história é a de Bernardo Herold, filho do médico da Escola Alemã, que assistiu e ouviu dos pais uma série de histórias interessantes e que nos levam a perceber que a vida e a História não podem ser vistas a preto e branco. Nem todos os alemães eram nazis. Isso também é importante que seja dito. Acho que é importante saber essas histórias, porque há sempre dois lados numa moeda. Traço o lado horrendo do nazismo ao fazer o contexto histórico, depois há este lado daqueles que são alemães, mas que até nem sequer estão muito dentro desse sistema. Todas estas nuances são importantes.

Aristides de Sousa Mendes não foi consensual durante muitos anos dentro do próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Há uma figura incontornável neste capítulo da História, que é o cônsul português de Bordéus - Aristides de Sousa Mendes. Porque é que Portugal demorou tanto tempo a prestar a devida homenagem a um homem que salvou milhares de pessoas do Holocausto?

A figura de Aristides de Sousa Mendes não foi consensual durante muitos anos dentro do próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros, porque se levantava o problema da desobediência. Vamos fazer um herói de uma pessoa que desobedece a ordens? Como é que depois podemos exigir que nos obedeçam? Lida-se mal com a questão da desobediência. As pessoas gostam de ser obedecidas. Se calhar todos nós gostamos. Há muitos anos falei com o embaixador José Tomás Calvet Magalhães, que era contra a reabilitação do cônsul Sousa Mendes. Ele achava que a questão da desobediência tinha sido gravíssima e que ele poderia ter posto em perigo a neutralidade. Perguntei-lhe: "Senhor embaixador, ele salvou ou não milhares de pessoas?" Ele ficou um bocadinho calado e depois respondeu: "Salvou." Passaram 80 anos e é isso que é importante. Devemos sempre olhar para as coisas à luz da época, mas depois ver o efeito prático que tiveram. Neste instante, é isso que me interessa. Mas também há outro motivo para ter demorado tanto tempo a dar honras de Panteão a Aristides de Sousa Mendes, que é um certo relaxar das coisas. Foram feitas várias coisas logo a seguir ao 25 de Abril sobre ele, mas são processos que demoram, demoram, demoram. Até que Mário Soares foi pressionado pelo Congresso norte-americano a fazer alguma coisa. E, em 1987, na embaixada portuguesa de Washington, o Presidente atribuiu a Sousa Mendes a Ordem da Liberdade.

 

Foi isso que espoletou o processo?

Sim, espoletou o processo da primeira atribuição da Ordem da Liberdade, que depois veio a ser "melhorada" com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade que lhe foi concedida em 2017 pelo atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Teve imensa graça porque o Presidente Marcelo referiu nessa altura que, como homem de centro-direita, reconhece a importância de Aristides de Sousa Mendes e o facto de ele ter desobedecido.

Sousa Mendes ainda levanta contestação na direita?

Alguns radicais da direita ficam muito enervados pelo facto de Salazar ficar mal no retrato. Poderá não ficar mal no facto de as pessoas que cá entraram não terem sido expulsas. Foram muito poucas aquelas que foram reencaminhadas para trás, como aconteceu no famoso comboio do Luxemburgo. E Salazar também permitiu que viessem para Lisboa as grandes organizações judaicas de apoio aos refugiados. O problema não está aí. Onde ele fica francamente mal na fotografia nem é tanto na instauração de um processo disciplinar ao cônsul de Bordéus, porque conseguimos olhar para os acontecimentos à época e perceber que, em tempo de guerra, é natural que uma desobediência dê direito a um processo disciplinar. Tanto mais que todos os países da Europa, e não só, tinham leis muito restritivas para a entrada de refugiados. O que está francamente errado é que há uma proposta dos redatores do processo disciplinar para uma punição pesada, mas que no fundo eram seis meses de inatividade e depois o regressar à categoria imediatamente anterior na carreira diplomática, e Salazar não aceita. Impõe o afastamento integral da carreira diplomática. Por outro lado, quando acabou a guerra, não se fez rogado de aceitar os louros da entrada de milhares de pessoas em Portugal. Portanto, claro que tem de ficar mal na fotografia.

 

Mas foi preciso uma movimentação a nível internacional para as coisas avançarem?

São sobretudo os filhos de Aristides de Sousa Mendes, ainda durante o Estado Novo e já depois do 25 de Abril, que lutam para reabilitar a memória do pai. É esse esforço, que depois é continuado pelos netos e pelos seus descendentes, que espoleta todo esse processo. É um processo que vai demorando porque as pessoas andavam distraídas e porque era uma coisa que já tinha acontecido há muitos anos. A Amália e o Eusébio entraram no Panteão muito mais depressa... E porquê? É um horizonte temporal mais próximo e se calhar mais mediático.

Se os refugiados da Segunda Guerra Mundial fossem ciganos ou muçulmanos, teriam sido recebidos em Portugal da mesma maneira? Não sei. Quero acreditar que sim.

O que têm a aprender com Sousa Mendes os atuais diplomatas?

Eu poria a pergunta de outra forma. O que é que nós todos temos de aprender com ele, enquanto seres humanos? Que os outros não são exatamente os outros, são uma extensão de nós próprios. Somos todos seres humanos. Podemos, noutra altura, ser nós a estar naquela situação. Se calhar, há alturas em que, para ajudar os outros, temos de fazer coisas que nos podem pôr em risco.

 

Tem havido nas últimas décadas uma divulgação de muita informação sobre o que se passou durante a Segunda Guerra Mundial. Há inúmeros livros, documentários, filmes. Havendo tanto conhecimento disponível, como é que explica o ressurgimento de movimentos de extrema-direita na Europa?

As democracias ocidentais têm sido desatentas. Devem ter a noção de que há situações que levam ao aparecimento desses movimentos. Há pulsões que nunca deixaram de estar presentes nas sociedades e cabe às democracias e aos governos democráticos, cada vez mais, serem irrepreensíveis, não pactuarem com coisas que não deviam. Isso cria descontentamentos nas pessoas e vai fazer crescer esses movimentos. O período entre as guerras foi quando esses movimentos de extrema-direita apareceram ou se desenvolveram mais, foram anos de grande desemprego, de instabilidade social, de luta de classes mais exacerbada; foi quando aconteceu a queda de Wall Street e todo o sistema capitalista levou a um desfasamento enorme entre muito ricos e a maioria das populações. Esse é terreno mais do que fértil para o pior das pessoas vir ao de cima. É importante perceber onde é que estão os problemas das pessoas e porque é que elas estão a escutar demagogos perigosos e, muitas vezes, charlatães que dizem aquilo que as pessoas querem ouvir mas que, no fundo, não querem dizer nada. Tem de se ir ao fundo das questões e ver porque é que as pessoas estão descontentes. A História eventualmente não se repete da mesma maneira. Não sei se esses movimentos terão capacidade de fazer uma reviravolta a nível europeu. Espero que não.

 

O tema dos refugiados continua bastante atual.

Sim, temos pessoas a fugir da guerra, da fome, da seca e de condições de vida extremas. Mas acabam por ter uma conotação negativa serem muçulmanas ou por outras razões. São refugiados diferentes e não temos tido muitos a entrar no país. A benevolência dos anos 1940 [em relação aos refugiados] não é a mesma hoje, de alguma forma as pessoas tornaram-se mais egoístas e menos empáticas. Tenho uma dúvida que me incomoda. Se os refugiados da Segunda Guerra Mundial tivessem outro aspeto, se fossem ciganos ou muçulmanos, teriam sido recebidos em Portugal da mesma maneira? Não sei. Quero acreditar que sim. Mas não tenho a certeza.

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